sábado, 20 de julho de 2013

#44. Diários de bicicleta: a perfeição da natureza

14-19 de julho/2013, 280km de Santiago de Compostela até Porto

Somos eu e Judi agora na estrada. Estamos pedalando uma das rotas de peregrinação a Santiago no sentido contrário. À medida que vamos descendo o Caminho Português em direção à fronteira encontramos peregrinos com mochilão indo ao lugar que a gente deixou. Vou baixando, baixando, e Santiago vai se dissolvendo. A memória do Caminho    essa pedrinha de açúcar eu jogo agora na água     spluft        desapareceu.  Sem querer essa viagem já faz parte de mim, se perdeu em algum lugar que é precisamente eu mesma. 

Começa agora uma espécie de mini-viagem depois da viagem. A sensação é esquisita, porque é frouxa:
- Eu e Judi não buscamos nenhum destino final de peregrinação.
- Não temos prazo pra chegar, não temos acomodação em nenhuma das cidades do percurso, não temos nenhum mapa.
- Somos duas mulheres na estrada.
- Temos uma barraca pra duas pessoas.
E qual é nosso objetivo?
Praia, sol, cerveja e coisas interessante de toda sorte. Em quantidades estratosféricas, se possível.

Vamos devagarzinho. Quando a Judi vai na frente, olho pra ela e depois de uns dois dias percebo impressionada que todas - e quero dizer isso mesmo, TODAS - as pessoas por quem ela passa param para assisti-la desfilar em bicicleta. É realmente um dominó de cabecinhas espanholas e portuguesas girando na direção da minha companheira de pedal.
A Judi não é só mulher, mas é mulher, e negra, e ciclista, num mundo dominado só, e exclusivamente, por meninos branquelos europeus. Me dou conta que estou pedalando há um mês e nunca encontrei nenhum ciclista negro. Mulher sozinha, só a Judi. E eu. E sabe o que? Temos a mesma bicicleta.
Não é à toa que as pessoas estão sempre gravitando em torno da gente.
Power to the people.
Sinto que somos as mulheres mais lindas e poderosas do planeta Terra.

Eu e Judi, o trem das mulheres segue lentamente, parando em praias e pegando ferrys para parques nacionais espanhóis. Além da alegria geral de estar nos lugares mais lindos do mundo, sou sortuda porque estou virando profissional da bicicleta. A Judi já está pedalando há sete meses - Brasil, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Espanha (!) - e me ensina tudo sobre cicloturismo. De alimentação pra mulheres a mecânica de bike, de dor de barriga na estrada a empacotar os alforges, até a difícil questão do ciclo menstrual e ciclismo... Estou tendo o melhor curso prático do mundo.
-" Thanks, Judi. Again!"
- "No worries! I'm happy that I'm putting a smarter cyclist on the road!".
Com a Judi estou sempre rodeada de mecânicos de bicicletas, ciclistas da comunidade ciclística, sempre informada de onde está rolando Massa Crítica, assistindo vídeos de pessoas que estão dando a volta ao mundo e que ela encontrou por aí...
E, Deus que me perdoe, esse é o esporte dos sonhos. Um monte de meninos legais, mochileiros e lindos.
É um batizado. De visitante, agora sou mais uma habitante do Maravilhoso Mundo de Cycleland. Sinto que sem querer encontrei um lugar no mundo.
Adoro estar perto de outra mulher como eu, com projetos parecidos com os meus, que adora ser mulher, e que adora desafiar as caretices sobre o que é esperado de nós mulheres.
Sou a pessoa mais feliz que existe porque entro no mundo do ciclismo através de uma mulher.
Namastê, Universo.

A natureza, a bicicleta e a Judi aliviam minha saudade do passado. Estou de volta ao presente, graças a Deus. E de recompensa, a inspiração: comprei minha passaginha. Dia 23 de julho chego em Barcelona, e daí continuo pedalando mais 25 dias até Genebra. Judi segue até Barcelona comigo, mas de lá nos separamos.
Por enquanto a gente continua aqui, em Porto, fazendo nada.
Claro, com dois belgas que, vendo a gente chegando cheias de graxa na cara, passam o dia perguntando e anotando nossas dicas sobre Santiago enquanto pedem mais uma garrafinha de cerveja pra gente.
Power to the people.



*Foto da Judi enquanto pegávamos o barco em direção às Ilhas Ciés, no Parque Nacional das Rias Baixas, Espanha


* Ilhas Ciés, no Parque Nacional das Rias Baixas, Espanha


* Nossa casa em Caminha, Portugal


* Glamour zero: esse é meu bronzeadinho ciclista-caminhoneiro-shortinho, enquanto deito na mesma toalha que vou usar pra tomar banho mais à noite. Mas a praia em Caminha estava linda.







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