quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

#55. The ashram diaries: empty before leaving


It's late September and I'm coming back from my 3 months bike trip hoping it won’t take longer than a week for me to go back to Spain. I miss her, I want to be at Saraswathi Ma’s ashram n-o-w.  In my plans, it is a quick stop in Geneva to wash my clothes, leave the bike, pack some winter jackets, start the procedures to renew my residence permit and immediately board a plane to Sierra Nevada.


(Afoot and light-hearted I take to the open road )*

Yet bureaucracy with my residence permit is no smooth this time.  A month passes in front of me while I’m here, stuck in Geneva with my expired visa. Sort of living illegally in the country, not allowed to renew my health insurance or flying back to Brazil, this time I’m also homeless, living at friends’ places, bags and clothes spread between Ana, Juli and Victor’s apartment.


(Suddenly everything has changed)**


But it’s surprising. It feels incredibly so light.
Not having a place is a relief, fulfillment, completeness.
10kg skinner, I’m all in my enormous loose jeans and breastless t-shirts.
Stripped from sexy clothes, home, documents, medical safety, plans for the future and even from my former lovely long curly hair         I come to sit alone by the lake and wait for some unfolding, noticing that Swiss days now are getting colder. Autumn comes into place.
Once unbearable, Geneva has never been so beautiful.

Away from the bad smell of sticky and useless belongings I naturally come to true learning.
:Bare Nakedness is a gift.

Empty and joyful, I'm now ready to go.

***
* "Song to the Open Road", by Walt Whitman
* "Suddenly Everything Has Changed", a song by The Flaming Lips 

This is the second post of "The Ashram Diaries" - a series about my 20-days living at the ashram Finca La Luz between late-October and November 17, 2013.

With Love and gratitude to Mooji and Saraswathi Ma.

***

*Suddenly, everything has changed


*Moojiji


* Saraswathi Ma

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

#54. Os Diários do Ashram - Amor, este tsunami/The Ashram Diaries - Love, a tsunami

[English version below]

O amor como um tsunami. O amor, este terremoto. Amor, letal, ou assim: uma navalha*, uma avalanche.

* * *

When I first met him I knew right there that my search was over. Nestas histórias de "encontrei o amor da minha vida" e, na vizinhança delas, a daqueles que encontraram Jesus, a Yoga, a vocação; nelas existe a imagem do encontro que contém tudo, que sobrepassa o impermanente, que encerra o tempo, que fecha as portas da memória, que dilui o vício da esperança - que esvazia a expectativa, uma navalha naquilo que quer alguma coisa que a gente não sabe bem o que é para um dia que a gente não sabe bem quando vai chegar.
Estas histórias, contadas retrospectivamente são meio assim: tudo agora está completo, e tudo sempre foi, mas só precisava ser encontrado. My search is over.

Dos lados de cá, o amor sempre me pareceu a um só tempo o sinônimo e a antítese do absoluto. Contido desde sempre dentro da minha compreensão como a única coisa que importa, ele pareceu sempre escapar, sempre insuficiente em si mesmo, sempre possível de mais e ainda assim sempre irrealizado. Minha fome constante, minha decepção permanente, o amor que eu sinto é maior do que eu e ao mesmo tempo me esmaga porque nunca me dá tudo que pode. Nunca meus companheiros ou amigos ou família parecem transbordar a fronteira do amor que eu espero e que eu sinto aqui, dentro de mim ( como é que você não percebe?); e então o vazio, a sensação de que algo falhou, e o abandono tem as as mesmas proporções do amor infinto, mas do lado avesso.

E assim, do lado certo e do lado avesso, pendurada entre o amar inevitavelmente incompleto e a solidão das expectativas frustradas, eu chego no começo de setembro a uma comunidade alternativa no meio da Serra Nevada junto com o Marvin. É de noite, a gente senta com uma menina alemã em volta da fogueira e eu escuto ela convidando: tem uma mulher iluminada que vive na vila aqui do lado. Vamos?

* * *

Estou aqui, na frente dela, mas não vejo luzes saindo da Saraswathi Ma, nem sinto que estou fora do meu corpo. Nada. Nenhuma queimação, nenhum chamado, nada se apresenta como um sinal cósmico. Pelo contrário, esta mulher é a mais prosaica das criaturas, um pouco mais velha do que eu, unhas do pé pintadas de vermelho, uns brincos grandes, uma pulseirinha de pérolas. A fronteira entre nós duas é tão pequena, e o fato de que ela é assim, meio Mariana, me coloca um abismo: se ela despertou, como é que se parece tanto comigo?

Fico ali, sentada, ouvindo, e alguma coisa de mim levanta. Vou fazer uma pergunta na frente de toda essa gente que eu nunca vi na vida: "Saraswathi, o que e intuicao?"

E pluft. Sem fogos de artificio de nenhuma sorte, meu coracao bate tranquilo enquanto ela fala comigo. Ela ela fala devagarinho, calma, com um acento britanico de urso de pelúcia, e eu nao tenho nada a nao ser uma sensacao de estranhamento. Deve ser isso, porque a única coisa que eu consigo sentir aqui é que ela fala de um lugar que eu reconheco, mas que nao sei muito bem onde fica. Ela nao tenta me convencer, mas de algum jeito eu entendo o que ela quer dizer sem entender muito bem como.

E de noite, de volta às nossas barracas. "It´s so weird, Marvin... She speaks from somewhere that is not the mind - yet it is doesn't challenge my intelligence, man".

* * * E depois disso eu ja nao lembro muito bem como foi - mas sei que foi rápido.
Dois dias depois eu estou acampando num jardim pra fazer um retiro silencioso com Mooji, que é um dos professores dela.
(Sei que nunca vou descrever a alegria que eu senti ao ver este homem pela primeira vez.)
Uma semana depois volto à Finca La Luz, onde vive Saraswathi, e sem entender direito por que eu simplesmente choro quando ela me olha. Foi assim, e durou 2 segundos: nos olhos dela eu vi o infinito, e o infinito era vazio. E quando ela olhava pra mim, e eu pra ela, era como se ela olhasse para todas as pessoas naquela sala. Entendi que tinha visto o Aleph do Borges.

Volto pra Genebra, arrumo minhas coisas, e em um mês estou aqui, na Andaluzia: sem cabelo, vivendo no ashram dela junto com outras 4 meninas. Eu, a doutoranda dos pensamentos complexos - eu agora estou aqui, com a cabeça aos pés da minha professora, sabendo que só existe este lugar no mundo, já que o lugar na verdade nao importa muito.


When I first met you I knew right there that my search was over.


Este é o primeiro de uma série de diários sobre os 20 dias que eu passei na Finca La Luz entre outubro e novembro de 2013.

Toda a devoçao do mundo ao Mooji e à Saraswathi: obrigada de novo, meus professores queridos, por cruzarem meu caminho quando eu atravessava a Espanha de bicicleta sem estar muito interessada em onde chegar.


Aí está: meu primeiro encontro com Saraswathi virou vídeo - e eu ainda aqui, de cabelo comprido e roupa de ciclista




Meu outro professor. Lindo, lindo: Mooji, eu sei que logo vou estar na sua Presença



* "Love´s a knife" - essas palavras nao sao minhas: justiça seja feita, eu emprestei da Saraswathi Ma
* "Finca La Luz" nao é literalmente um ashram permanente de Saraswathi Ma, mas um espaço de silêncio em Órgiva, Andaluzia, onde ela ofereceu sua presença durante seis meses entre junho e novembro de 2013. Ma agora está em trânsito, e sua agenda pode ser consultada em www.saraswathima.org
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[English version]



Love like a tsunami . Love, this earthquake. Love, lethal love or so : the sharpest knife *.
:an avalanche.

***

"When I first met him I knew right there that my search was over". In these stories of "I found my soulmate" or of those who have encountered Jesus, their Yoga path, their vocation or sense of mission in this lifetime - in all these stories I have always recognized the image of some sort of Absolute. Although alien to my own experience, I could see right away that they spoke in their own way of an Encounter which contained all encounters, which surpassed the impermanence, which stopped the time into Now, which was able to shut the doors of memory and dilute the addiction to hope. The ultimate Encounter would be that one that could render every sense of expectation senseless - there´s no use for waiting for something. It´s all given, it´s all there. My search is over.

As for love, I would say that love, hidden inside my own little Mariana box, love always appeared to me in a quite contradictory manner.  It has always been crystal clear to me since I was a child: love and only love is real. Yet why has it always showed itself as the synonym and the antithesis of the Absolute? I've always come to you, love, but you've ever seemed to escape from my hands, always insufficient in itself - enormous but unavoidably unfulfilled. My constant hunger has your name, love, my everlasting disappointment is a big continent in which all the citizens are none other than you. And you've crushed me, for never did my lovers or friends or family, in my eyes they appeared never to exhaust love the way I saw it. And every time, every single day in which my hunger for you was not satisfied, then came this emptiness, this feeling that something failed. Abandonment, this is my sense of you, mister love - this is you, but inside out.

And it was just like this, oscillating from inside and inside out, that I arrived to an alternative community in the middle of the Sierra Nevada along with my beloved friend Marvin. Night, the beginning of September and we're sitting with a German girl around the campfire. It's late and I hear her saying: there is an enlightened woman who lives in the village next door. Shall we go meet her tomorrow?

***

There I was, right in front of her, but I saw no pink-violet-orangish lights coming out of Saraswathi Ma nor did I feel I was out of my body or some crazy stuff. Nothing. No burning inside, no cosmic call - absolutely nothing, nothing presented itself as to prove me I was in the presence of some sort of goddess. Rather, this woman is the most prosaic of creatures. A little older than me, toenails painted red, earrings and a pearl bracelet. Dressed just like any of my friends could, I sense that the border between us is so invisible that it almost does not exist. But the very fact that she could be a Mariana somehow establishes a gap in my perception of us: if she is indeed awakened, how come does she look so much like me?

I'm there around some twenty people, and all of us are seating in silence. Out of the blue something from me raises my hand: "Saraswathi what is intuition?"

And pluft. No fireworks cross the sky of Órgiva, but my heart beats peacefully as she answers my question. She speaks slowly with a British accent that makes me feel I'm in front of the most polite creature on Earth, having a mug of tea and discussing how life feels like in the countryside.  It doesn't feel neither good nor bad - it´s just strange. But there´s this one thing that triggers my attention - she's speaking from a place that I recognize, yet its exact address is not exactly clear. And there she is, speaking, not trying to convince me in any manner, but I understand what she means without knowing exactly how.

Night, we´re back in our tents: "It's so weird , Marvin ... She speaks from somewhere that is not mental - but it is does not challenge my intelligence, man ."

* * *

And after that it all came so fast that I can barely remember.
Two days later I was camping in somebody´s garden to participate in a 7-day silent retreat with a guy called Mooji - which is actually one of her teachers.
(And I swear nothing in this world can ever describe the joy I felt as I saw this man for the first time.)
A week later I return to the house of Saraswathi, and without understanding why I just cry when she looks at me. It lasts 2 seconds, but somehow in her eyes I see the Infinite, and the Infinite is empty. She looks at me, I sense as if she is looking at all the people in that room at the same time.
Yes, I got it: that's Borges' Aleph. This is definitely the full-meal Love, capital letters, I've been looking for. Impossible to be hungry at this lady's restaurant.

I come back to Geneva, pack my things and in a month I'm back in Andalusia. Now I have no hair and no house; now I'm living in her ashram along with 4 other girls.  Mariana, the PhD student of complex thoughts - here I am     now        head to the feet my teacher, not knowing where to go, yet knowing there´s nowhere to be.
And it doesn't really matter, for everywhere and anywhere are just exactly the same and at the same time.


When I first met you I knew right there that my search was over .

* * *

This is the first post of a series of diaries about my 20 days at the Finca La Luz between October and mid-November 2013.

All my gratitude to Saraswathi Ma and Mooji for finding my way as I crossed Spain with no final destination.



Yes, yes - the moment of my first encounter with Saraswathi Ma was actually recorded and can be found at YouTube



Mooji, the Beautiful: happy because I know soon I will be in your Presence



* "Love´s a knife" - those are Saraswathi Ma's words
* "Finca La Luz" is not a permanent ashram of Saraswathi Ma - it is a space of silence in Órgiva, Andaluzia, where she offered us her Presence during six months between June and November/2013. Ma is now travelling, and her scheduled can be found at her website: www.saraswathima.org 

sábado, 21 de setembro de 2013

#53. Diários de bicicleta: More stars than there are in heaven

We'll walk hand in hand
Never as we planned
And even those we never knew
Fast they disappear from view
Fading world without a price
Right before our very eyes
Melts before our very eyes
Dies before our very eyes
[Yo La Tengo, "More stars than there are in heaven"]
 
E entao as rodinhas da minha bicicleta tocam o solo da Andaluzia. Em cima delas vai o meu corpo, e juntas chegamos com os sonhos de alguém que espera. Com as vontades de alguém que deixou o tempo passar em balneários farofeiros para só entao cruzar na direçao de um sul que a 40 graus era impedalável no mês de agosto.  Com as expectativas de quem ouviu tantas vezes nesta viagem que "los andaluces son la mejor gente que hay en España".
E com o medo original que reside em todas as expectativas inevitáveis: a de que nao resistam à experiência. Que afinal de contas é o que normalmente acontece com elas.

 ***

O meu mapa Michelin de papel me mostra que estou numa regiao enorme, e que entre as grandes cidades há pueblitos perdidos no meio de um calor total, mesmo no mês de setembro. Sentada no hostel em Almeria, pego meu marca-texto para desenhar minha rota, juntando os pontinhos de cada um dos meus destinos finais. Minha constelaçao é um polígono aberto, e minhas estrelas sao Almería, Parque Natural de Cabo de Gata, depois para o norte tem Granada, Córdoba, Sevilha, e de aí me vou de trem até Madrid para pegar o eternamente cancelado vôo pra Genebra.
Um mês depois, sentada no computador enquanto passo minha última noite na Andaluzia, me dou conta que meu projeto original ficou só mesmo nas linhas azul fosforescente que eu desenhei no meu mapa de papel. Nao fiz nem metade da viagem pela Andaluzia. Away from it, nesse setembro meu GPS de pulso passou a maior parte do tempo perdido nas profundezas dos meus alfojes, e em algum lugar entre aqui e lá eu esqueci completamente de lembrar os quilômetros diários que até entao eu cuidadosamente registrava no meu caderninho. Minha bicicleta conheceu a paz silenciosa dos estacionamentos enquanto eu experimentava o mundo da biketrip sem a bike e nem a trip, para entender finalmente a obviedade de que minha aventura nunca foi sobre nenhuma das duas. Quando pedalo, faço no máximo 50 quilômetros, e dos mais vagabundos, vendo o desfile do mundo no sonho das coisas que passam. Nesses mês eu fumo, bebo cerveja e vinho, caminho a pé com minhas havaianas européias vagabundas, como nos parques e nos bancos das praças, esqueço os principios nutricionais e o bla bla das digestoes todas dessa vida enquanto meu canivete vai cortando o pao com queijo de cada dia e eu vou assistindo sem pressa meu corpo que derrete devagarzinho, impossível de caber nas roupas de três meses atrás.
Na Cabo de Gata que nao é senao um parque com praias e montanhas em pleno deserto, eu tomo banho na água salgada da metáfora das três paisagens que representaram minha viagem. Em Granada, quando desisto de encontrar um parceiro de bicicleta, por acaso acabo sentada na mesa de um café em frente de um menino que tem os olhos do silêncio. Eu digo sim, ele diz sim também. No dia seguinte, lado a lado, nossas bikes vao buscando o caminho da Sierra Nevada.

Com o Marvin eu subo e desço pedalando as montanhas na chuva, e juntos passamos duas semanas meditando nos jardins das Alpujarras, comendo figo e tomate das árvores, acampando sob os céus mais estrelados que eu já vi na minha vida. Um dia eu acordo e é hora de ir embora. Sinto que tudo que respira em mim é amor, e meu amigo entende e sei que sente o mesmo. Com a paz de quem confia de que o que há no final está de acordo com o Sagrado Mistério de Tudo, eu abaixo minha cabeça enquanto o Marvin vai raspando meu cabelo devagarzinho, dizendo que meus cachinhos que agora caem no chao sao estranhos porque crescem em todas as direçoes.




- I look weird now, Marvin.
- You're still Mariana. 





quarta-feira, 28 de agosto de 2013

#52. Diários de bicicleta: kitsch me, babe

Valência-Xeraco-Les Rotes-Platjas del Pi-Santa Pola-Cartagena
330km para chegar no mundo de Gabriel 

Nada de mau pode acontecer comigo se eu estou perto do mar.
Nem o vento contra, nem os edifícios de mau gosto que enfeiaram essa parte da costa mediterrânea da Espanha com a bolha econômica da construçao civil, nem o calor de 35 graus pegajosos que me transforma num chafariz suador ambulante. 
Descendo de Valência em direçao ao sul da Espanha pela linha da costa, eu presto atençao é no mar transparente, no ventinho úmido que me lembra a Bahia, no mundo dos seres humanos que saem com sua farofa no isopor pra curtir a praia no verao. Digo definitivamente adeus à fairy tale dos hipsters gatinhos de Barcelona e da Costa Brava. Minha pequena Blanca e Cálida costas espanholas, minha Porto Seguro misturada com Cancún; minha maravilhosa terra de balneários para farofeiros alemaes e britânicos que usam sandálias com meias; meu amado mundo de parquinhos de diversao de plástico enfiados no meio do mar: eu te aceito do jeito que você é; eu te recebo na sua cafonice com meus braços bem abertos.

***

Algumas coisas o deserto tinha que me ensinar. Mas mais que me ensinar, ele me deu fome de ver gente, como se encontrar com outros seres da mesma espécie fosse uma sorte de necessidade fisiológica. E aqui nesta parte da costa espanhola nao pode existir mais gente. E nao pode existir gente mais cafona. O pessoal do cabelinho de gel e estilo jogador de futebol. As gatas de shortinho e sandaliona alta meio travecs. A turma alemao-de-balneário. Descendo Valência em direçao a Alicante, e depois até Cartagena, é aqui que eles vivem em agosto, e sua capital simbólica nao poderia ser outra senao Benidorm, uma cidade tao asquerosa quanto Camboriú e onde o mar nao passa de um enfeite na paisagem shopping center de prédios, ruas largas e lojas de souvernirs.

Mesmo assim eu digo sim. Decido que quero exercitar todas as formas que eu conseguir de dizer SIM, bem alto, pra tudo quanto é coisa. E começo mandando toneladas de mensagens pelo Warm Showers, que é o couch surfing dos ciclistas. "Sou ciclista pedalando a Espanha há dois meses e meio - quer me receber aí no sofá?"  Eu, que sempre gostei mais de cachorro do que de gente, eu agora estou facilíma pra qualquer um.

Assim é que tenho as experiências mais interessantes, começando por Valência, onde sou recebida pelo Carlos, um colombiano good vibe que faz um doutorado por lá e que me leva pra um city tour completo em bici. Like-minded, ele me dá as melhores boas-vindas ao meu propósito de voltar à terra das gentes. E logo vou baixando pra encontrar uns kyte surfers lindos e barbudos que me pegam pela mao e me levam para uma - acreditem se quiserem! - praia selvagem no meio da prediarada. E ali passo uma tarde inteira, de topless e com a bicicleta estacionada na areia, assistindo os kytes como se fossem pipas no céu. Já acho que estou abusando do Universo quando, dois dias depois, paro numa praia maravilhosa de pedrinhas ao lado de Benidorm e, bici de novo na beira do mar, vejo um casal acenando com uma latinha de coca-cola debaixo do guarda-sol. Eles sao valencianos e viajam por aí, meio hippie, casal de 50 anos sem filhos e com cachorros - "hoje você nao vai a lugar nenhum; hoje você dorme numa caminha gostosa no nosso trailer e a gente vai cozinhar pra você!". Enfio a bike no carro deles e aí estamos os três, comendo uma janta maravilhosa enquanto eu brinco com a cachorrinha yorkshire. Assistimos um filme dublado na tv, falamos bobagem como se nos conhecêssemos de toda a vida, e meu coraçao está apertado na hora de ir embora. 
Meu Deus do céu, cada vez mais eu amo a Espanha.
Em dois dias chego finalmente a Cartagena. A cidade é esquisita, e minha impressao é que há uma certa urgência sexual no ar. Nunca me senti mais observada, e é como se cada pessoa estivesse comendo minha perna e minha bunda com os olhos. Descubro que a pensao que eu reservei pela internet é na verdade um prostíbulo, e o quartinho onde minha bici fica guardada tem um cachorro fedorento dormindo. Na sala do lado, uma moça faz as unhas com vestidinho decotado.
À la Gabriel Garcia Marquez, acho tudo engraçado e me despeço mentalmente desse lugar que, à sua maneira esquisita, é a apoteose da minha volta à humanidade. Hoje à tarde começa outro mundo; hoje â tarde vou pro lugar com que eu sempre sonhei, né? Andaluzia querida, que é que você vai me ensinar?




*nesse ponto já tenho muitas fotos, mas tem sido tao difícil fazer upload nestes internet cafés... Juro que em um mês farei update de todos os posts com imagens das coisas e pessoas que estou encontrando por aí

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

#51. Os diários de bicicleta: porque eu odeio os desertos de dentro e de fora

Zaragoza-Híjar-Castellote-Martín del Río-Teruel-Albarracín
8 dias, 300 inesquecíveis quilômetros no meio do mais puro-lugar nenhum

Deus criou a perfeiçao dos dois meses da minha viagem de bicicleta, como se fosse uma sinfonia, uma coisa perfeita, algo que, tivesse eu previsto como ideal, seria insuportavelmente chata - a realidade me saiu duzentas vezes melhor. Pois vejam - saí da França onde eu vivia, acompanhada de uma companheira e aprendiz de cicloturismo como eu, gentilmente deixando o meu mundo na direçao do sul, com carinho e amor. Depois do teste drive com a Carol, entrei na Espanha e respirei aliviada: feels like home; já estou apaixonada por esse país no primeiro dia. Desci e alcancei uma sorte de cura espiritual pra dois anos da Suíça-dos-coraçoes-gelados entrando na Espanha e chegando a Santiago de Compostela. No caminho conheço minha guru de cicloturismo, minha linda Judi, e com ela pedalo até Portugal. Quando chego a Barcelona no horroroso Polishop-voador que é a Ryanair, recebo o amor da Ju e do Michel e pedalo sozinha esta coisa livre, maravilhosa, diversa, altamente ciclística e exuberante que se chama Catalunha. Nunca fui mais feliz entre montanhas, mares, ciclistas, vulcoes cheios de vegetaçao. Dali pego um trem pra Zaragoza, sem dúvidas minha cidade preferida na Espanha, conheço a comunidade ciclística ativista na Ciclería Social Club e marcho pros Pireneus, passando três dias nas montanhas mais bonitas que eu já vi na vida (e olha que eu morei na Suíça, né?).
Tudo até que, voltando a Zaragoza, eu decido pedalar em direçao ao sul, fazendo meu caminho até esta cidadezinha famosa chamada Albarracín, a uns 250km - dali o plano é descer em direçao à Valência, depois baixando pela costa e chegando à Andaluzia.
O que eu encontrei na minha descida até Albarracín, meus amigos, foi o deserto. Nem sabia que tinha deserto na Espanha - vai dizer que você sabia? Pois bem: deserto de Mosnegros, it is.
E agora eu entendo que existem coisas que alguém pode aprender amar, como eu aprendi a amar as montanhas.
Do deserto eu quero distância até o fim dos meus dias. O deserto pra mim, apesar dos meus esforços, nao passa de um grande, gordo, asqueroso e potente  mind fucker.

***
Quando foi a última vez que você ficou sozinho?
Você lembra de algum dia em que nao viu e nao falou com NINGUÉM stricto sensu?

Saio de Zaragoza na maior tranquilidade, uma da tarde, e às três faz 40 graus. A estrada é uma reta, e dos dois lados eu vou vendo nonstop essas montanhas, e tudo é pedra, um tom interminável de marrom e dourado. Nenhuma plantaçao, só montanhas baixinhas de pedras brancas, terra e capim queimado. Passa um carro a cada vinte minutos, quando muito, e quando olho pra frente o asfalto vai fazendo aquelas ondas de miragem de deserto. Eu pedalo, pedalo, e a terra de ninguém nao termina nunca. O horizonte é eterno, nao existe ponto de chegada. Os pequenos pueblitos estao a cada 30km e eu começo a ter medo. De tudo, basicamente, porque a água está acabando, porque a única coisa que eu encontro no asfalto sao essas dezenas de passarinhos mortos e de cobras douradas que atravessam rapidinhas o meu caminho.
Nunca imaginei que 50km pareceriam tao longos. Uma semana, e todos os lugares onde eu chego sao horrorosos, carissimos, nada pra comer. É tao seco que minha lente de contato vive seca. Eu paro constantemente, faço uns exercícios de yoga, mas sinto como se estivesse sufocando. Nao consigo respirar. Nao consigo dormir. Enfiada numas estradas secundarias onde nao existe ninguem, escrevo pros meus amigos bombeiros canários informando onde estou - y se por la noche me llamas y no contesto, llama a los bomberos aragoneses para que vengan por mi, porfa. Principalmente o medo de morrer, a solidao absoluta, a desconexao total. Um monte de montanhas difíceis e aquele nada absoluto e ubíquo, uma eterna vontade de vomitar, uma eterna vontade de gritar.
Chego a Albarracin, essa cidade que todo mundo ama e que o Lonely Planet me diz que é uma das mais lindas da Espanha, e eu nao consigo caminhar. Estou exausta. Passo dois dias deitada na minha barraca, só saio pra colocar minha perna fodida no rio. E quando, depois de dois dias, tomo meu caminho pra Valência, oq ue acontece é assim: depois de 60km eu paro na beira da estrada, sento e começo a chorar.
I´ve had enough.
Nao sou feita pra essa solidao.
Nao sou obrigada a ficar nesta merda.
Odeio o deserto e ponto. Nao adianta.
Saio correndo pra estacao de trem como se fosse uma fugitiva, peço uma passagem pro primeiro trem pra Zaragoza. Entro no trem e imediatamente consigo respirar, impressionante. Chego a Zaragora, vou logo à Cicleria, e ja me convidam pra um pedal às 21:30 da noite. Só meninas, 30km, pra curtir o primeiro dia de lua cheia e tomar uma cerveja. Somos 20 mulheres e uns 5 caras, estou feliz, adoro este lugar.
Nao se pode aprender a amar tudo. E eu aprendi agora que existem coisas que a gente precisa odiar. com toda a força da sobrevivencia.
O deserto agora é minha metáfora pessoal.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

#50. Os diários de bicicleta: dicas de cicloturismo, parte 1

[este post será dividido em dois ou três, porque as dicas são muitas e o texto é muito longo!]

Recebo um montão de mensagens de amigos que pedem toda sorte de dicas de cicloturismo.
Perguntas sobre o caminho de Santiago são as mais populares, mas também tem muita gente querendo saber qual foi a minha rota, como comer na viagem, que coisas levar, qual tipo de bicicleta aguenta esse tipo de viagem, se é preciso ser fit pra viajar de bike, onde dormir, como se planifica o caminho, em quais países dá pra pedalar...
Como a viagem ainda não acabou, e como toma tempo demais nesse momento da minha vida de sem-computador pra descrever bonitinho, step-by-step os lugares por onde eu passei, então vou postar o roteiro da viagem - com descrição das estradas que eu tomei, como chegar e como partir - quando terminar os próximos quilômetros que me esperam. Dividir é a minha forma de agradecer a todos os ciclistas que pararam, riscaram meu mapinha e me indicaram os melhores lugares e estradas para pedalar.
O caminho de Santiago é uma etapa à parte, e também os detalhes de como eu fiz a viagem eu vou postar mais pra frente (mas se você quiser pedalar por ele agora, entre aqui no www.bicigrino.com, que você encontra tudo que precisa pra fazer o Caminho!).

As dicas que vou dar aqui são na verdade o jeito que eu encontrei pra fazer as coisas, e podem ser resumidas assim:
é mais fácil do que parece.
tire férias e vá pedalar.


***

A bicicleta

Depende do que você quer.
Se você quer um veículo 4X4 que te leve pra todo lado, vá de mountain bike (mas você vai ser bem mais lento no asfalto).
Se você gosta de pedalar smooth, vá com uma bike híbrida - o nome chique para genérica -, dessas que parecem um pouco com mountain, mas não têm suspensão e têm a roda mais fina. A minha é assim (mas você ficará limitado em trechos sem pavimento).
Se você tem grana pra investir, compre uma bicicleta de cicloturismo, que é super robusta e aguenta muito peso (mas eu realmente não gosto muito, porque são muito pesadas e cansam pra subir escada de hostel!).
Nunca vá com essas bicicletas de cidade, tipo dobrável, ou sem marcha, ou com poucas marchas.
Vá com a melhor bike que você puder. Porque se alguma coisa estiver minimamente desconfortável, compaheir@, eu juro: esta coisa ficará absolutamente insuportável no seu quinto dia de viagem, quando você estiver passando 5 horas diárias sentadinho e embaixo do calor ou da chuva.
Revise sua bike antes de sair de viagem.
Cuide de sua querida bundinha e adquira um assento confortável, mesmo que ele seja um pouco caro.
Não esqueça: a melhor bici é aquela que tem o quadro que ajusta ao seu corpo. O resto, todas as outras peças são cambiáveis; o quadro não. O quadro, meus amigos, é o coração da bicicleta.


*Essa é a minha companheira: Trek 7.2

Levar ou alugar bicicleta?

Se você vai pra algum lugar longe, e sem carro pra levar sua bici, essa é uma pergunta crucial.
Olha, eu sempre levo a minha porque as bicis pra alugar que tenho visto até agora são uma porcaria. E seguramente bicis boas de aluguel devem custar uma fortuna. E quando eu digo fortuna, eu digo Fortuna, assim mesmo, com um F bem grande no começo.
No avião: isso significa que eu encaro a bucha de desmontar minha bicicleta, colocar coisinhas pra protegê-la de choques, buscar pedaços de papelão e montar uma caixa gigante, ralar pra encontrar um táxi que leve meu bebê e pagar uma fortuna pra chegar com ela até aeroportos. Na verdade é divertido; nem é tão chato assim. As companhias aéreas geralmente transportam sua bici, mas a política para isso varia em cada uma delas. Cheque antes. Em alguns aeroportos do mundo há mesmo empresas que embalam a bike pra você!
No trem: na Europa há trens que levam a bici sem desmontar. Na Suíça, por exemplo, é facílimo; na França é meio chato; na Espanha é um perrengue. Mas sempre tem como levar; trens são sempre a melhor opção pra transportar bikes. É só uma questão de checar com a companhia de trem do país que você escolher como é que funciona por ali.
Ônibus: alguns te obrigam a desmontar, outras companhias levam a bici inteira. Mesma coisa - checar com as companhias.
Não esqueça: desmontar a bike é sempre a pior opção, porque é chato e toma um tempão.
Se você não sabe desmontar, leve a bike no seu mecânico, fique assistindo ele fazer, faça mil perguntas e aprenda a montá-la de novo. Esta será sua primeira e melhor aula de mecânica.

Alforges


Ciclistas não viajam de mochila - por causa do equilíbrio do corpo e do conforto, os alforges são as mochilas dos ciclistas.

A bici é barata comparada com o equipamento que você vai precisar pra poder fazer uma viagem, mas se o equipamento for bom ele vai durar pra sempre. O custo da sua viagem de cicloturista tende a diminuir drasticamente no longo prazo..
Instale um bagageiro na bike e ali pendure seus alforges. Eles têm que ser impermeáveis, e as melhores marcas que rolam são Vaude ou Ortlieb. O meu par de alfoges custou 150 euros, se você quiser saber mais ou menos a média de preços.
No guidão, instale uma bolsinha removível e impermeável especial pra bicicleta. Ali você vai colocar sua carteira, documentos, protetor solar, óculos de sol e todas as outras coisas de uso frequente. É maravilhoso, é essencial!
*Minha bike na Costa Brava espanhola - detalhe é a bolsinha que vai na frente

Tem que ser ciclista pra começar? + Pra não se machucar

Não precisa ser atleta pra começar.
Já vi bastante gente sedentária que ficou fit pedalando em cicloturismo. Vixe... muita gente mesmo.
Mas se você não está acostumado a pedalar com carga - quase ninguém está, né? - vá bem devagarinho nos primeiros 10 ou 15 dias.  Pense que bicicleta de viagem, com carga, é um outro veículo, meio que uma carroça. O centro de gravidade é diferente, o equilíbrio é diferente, subir encostas é diferente, descer é diferente.
Treine a humildade, faça poucos quilômetros por dia, alongue, aproveite pra parar e visitar os lugares bonitos do caminho, pra fazer um piquenique embaixo da árvore. Mesmo que você sinta que pode ir mais, não vá. Escute seu corpo. Chegue no fim de cada dia, entre no chuveiro/banheira e tome um banho da água mais gelada que você conseguir encontrar, mesmo que isso signifique um sofrimento louco e que os seus ossos doam mais que a vida. Isso vai desinflamar todo o seu corpo e vai ajudar na sua recuperação muscular.
Dá pra escrever uma história sobre as pessoas que eu vi machucadas no caminho, a maioria delas com tendinite no tornozelo ou com problema de joelho.  Na maioria das vezes a lesão vem do sobre-esforço, e geralmente a gente não se dá conta que está passando do limite. Eu mesma machuquei meu pobre joelhinho no meu primeiro mês...
Lembre: o pessoal que pedala 70km por dia na manha geralmente não se machuca. Esses normalmente são os cicloturistas experientes.
Então use o cicloturismo pra descobrir o seu corpo e pra cuidar dele.
Se você quer pedalar um montão por dia, a melhor coisa é pegar sua bike e sair pedalando por aí, livre e leve, sem alforges e sem compromissos.
Se o negócio é sair de cicloturismo, vá devagar, pedale menos, contemple mais. A recompensa no final será um corpo forte e sem lesões.

Comendo

Ciclista de longa distância é como diabo da Tasmânia ou - citando o Manu - o Cookie Monster.
Nada nesta vida dá mais fome. E quando eu digo fome, digo: comprar um pacote de macarrão, comê-lo inteiro na janta (=500 gramas), chegar no final da viagem de 2 meses e ter perdido cinco quilos e meio. Digo: comer cinco croissants, um café com leite e um suco de laranja no café da manhã. Digo: uma pizza inteira, uma salada e um sanduíche de meia baguette na hora do almoço, e mais uma coca-cola normal pra acompanhar.
Cada pessoa tem uma estratégia pra comer que nem monstro, ter sempre comida à mão e ainda por cima não acrescentar muito peso aos alforges. Vou explicar a fórmula que eu desenvolvi pra mim, e que foi a melhor que eu encontrei até agora.
Iogurte todo dia, porque meninas têm que cuidar muito do ph e evitar chatices como corrimento e outras doenças íntimas.
Sempre tenho comigo um saquinho de ameixa seca, que são fibra pura pro intestino, e que ainda por cima têm bastante açúcar.
Uma caixinha de 1 litro de suco de laranja sempre me acompanha no quadro da bike, do lado da garrafa de água. É açúcar puro, absorve rápido, tem bastante calorias e vitamina C.
Um pacote de cookies, porque se o açúcar baixa de repente eles sempre estão ali.
Duas bananas - uma antes, uma depois da viagem.
Quando sinto dor no estômago por alguma razão, como bastante maçã. Não sei qual a ciência disso, mas elas me ajudam muito. A mesma coisa com limão. Sempre carrego comigo um limão.
Um pacotinho de castanhas sempre salva a pátria da vontade de comer sal.
Na hora do almoço, tiro dos alforges um pãozinho, um queijo, tomate. Na janta sou mais cuidadosa e, no camping ou no hostel, encaro bastante abacate, salada escura (espinafre ou rúcula; o que tiver), a proteína disponível, macarrão.
Ser vegetariana é difícil. Quando encontro, me jogo em cima dos grãos de bico. Como nem sempre foi possível, flexibilizei e comecei a comer peixe e frutos do mar na viagem. É difícil, porque o corpo digere mal, mas foi a solução.
No mínimo 4, mas normalmente uns 5 litros de água por dia.
E no final de cada dia, a maravilhosa, a genial, a benvinda cerveja que salva a pátria.










domingo, 11 de agosto de 2013

#49. Diários de bicicleta: revisão dos 3.000km

In a nutshell

No comeco foi assim: minha amiga Carol e eu decidimos fazer uma viagem de 14 dias em bicicleta. Saímos da Bretanha no dia 14 de junho e pedalamos 1200km descendo a costa atlântica da França até a fronteira com a Espanha, no País Basco.
As férias acabaram, ela voltou. Eu tinha fechado meu apartamento em Paris e não conseguia responder à pergunta fundamental - "voltar pra onde?"- , porque acho que de um jeito ou de outro sempre me senti parte de lugar nenhum. Diálogo interno com meu corpo que então só estava se acostumando a passar o dia sentadinho na bike, eu decidi pedalar até Santiago de Compostela porque precisava de respostas. No começo, sozinha, mas no caminho pesquei alguns amigos espanhóis e conheci a Judi, minha nova companheira de bici. Cheguei a Santiago com o coraçao mais leve, sem muitas respostas, mas pelo menos com perguntas mais interessantes. Na calculadora somei mais 800km, tive uma história de amor daquelas bem lindas com um ciclista espanhol e descobri que eu gosto mesmo é de pedalar as montanhas.
Depois de Santiago deu um vazio, mas não deu nenhuma vontade de voltar. Peguei a Judi e fomos descendo pela costa em direção a Portugal pra descobrir que os nossos colonizadores são motoristas pitbulls. No caminho passamos por um parque nacional espanhol, fizemos um hikingzinho e acampamos, adicionamos mais uns 300km ao nosso odômetro e pegamos um bronze maravilhoso pelas praias que a gente encontrou.  Era verão e fazia sol por dentro e por fora.
Mas eu queria ficar na Espanha e sair do Portugal infernento das estradas. Então roubei papelão no lixo, montei uma caixa e peguei um horroroso vôo da Ryanair pra Barcelona. O ticket da bicicleta custou mais do que o meu. Cheguei sem saber pra onde ir, mas Barcelona é maravilhosa, né?, e quando eu entrei na primeira loja de bicicleta com um mapa na mão e perguntei pro menino do conserto "pra onde eu vou?", ele apontou vulcões, praias transparentes, cidades medievais e mais uma tonelada de montanhas, e então alguma coisa dentro de mim começou a rir bem alto de novo. Santiago is over, mas o mundo, o mundo é um lugar localizado no beyond e está cheio das ciclovias que você quiser, te levando pra onde você escolher. Este é o Caminho.

Foi bem assim que descobri que a Catalunha, vista por dentro, é um coração em formato de bicicleta.

Na dureza de serras infinitas e paisagens agrestes do Dali, fechei meus 3.000km de bike. Pra celebrar, tomei um trem pra Zaragoza, deixei a bicicleta no hostel e peguei um buzão pros Pireneus. Porque os Pireneus - olha, os Pireneus sempre foram o meu sonho. E eu caminhei 60km neles em três dias, saindo todos os dias da minha barraquinha azul de trinta euros que viveu tormentas inenarráveis, chuvas de granizo e ventanias que me assombraram e não me deixaram dormir.

O escocês que é campeão de corrida no leste da Suíça, e que caminha Alpes e Himalaias semanalmente, me acompanhou e descreveu nas caminhadas: I have never seen a woman as strong as you in the mountains.
Obrigada, Ranald.
Subi no carrinho dele e peguei uma carona até Genebra, rezando pela segurança da minha bicicleta em Zaragoza. Subi na balança e pluft: 5.5kg a menos, as pernicas duras  e uns músculos na bunda que eu nem sabia que existiam.
Parece que eu estive 3 anos fora.
Em quatro dias eu volto pra Espanha pra pedalar mais um mês. Ou dois, até o outono chegar.
Porque ainda     ainda eu não descobri pra onde eu posso voltar.
Sadhu.

 *Vista na chegada de bicicleta à praia de Montjoi, na Catalunha


 *Hiking os Pireneus


*Minha barraquinha valente
 
*Judi e a terrível confecção de caixas caseiras para transportar a bicicleta no vôo da Ryanair

*o filme que é uma espécie de identidade

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

#48. Os diários de bicicleta: Catalunha. Ponto.

26 julho - 02 de agosto
Barcelona-Parc Natural Montseny-Girona-Olot-Figueiras-Roses/Cap Creos- Cap de Begur - Tossa del Mar-Barcelona
350km de montanhas, praias mediterrâneas e vulcões, bem dentro do coracão do ciclismo

A Catalunha pra mim sempre foi Barcelona. Ponto.
E I never really got it. Porque, pra ser bem sincera, eu sempre achei Barcelona um pouco overrated.
Mas quando eu saí de bicicleta em direcão ao interior... Bueno. O mundo e seus tapas na minha cara.

Porque a Catalunha é um lugar assim: com praias transparentes de água quente e selvagens, montanhas maravilhosas que se espalham do interior até a costa, de zonas vulcânicas onde o chão meio que dissolve enquanto você faz o seu hiking sozinha em trilhas estreitinhas mas delicadamente sinalizadas, de cidades medievais cravadas literalmente sobre umas paredes de pedra na beira de precipícios.
E tudo isso, tudo isso no coracão do ciclismo.  Porque aqui é um dos hot spots do ciclismo mundial, um desses lugares cheios de estradas secundárias, com montanhas e retas, e que nunca fica tão frio que torne o inverno inciclável.
Vou comprar uma banana e o quitandeiro é ciclista, abre meu mapa e indica a melhor rota pra eu seguir. Um dia antes o cara do restaurante do camping, já meio pancudinho, anunciava seus 20 anos em cima de uma bike e me mostrava, também no meu querido e amassado mapa, como pegar a estrada que é, definitivamente, a mais linda em que eu já pedalei na vida, saindo de Arbúcies até Girona entre um cânion, à esquerda, e uma parede de pedra, à direita.

Acordar, pedalar 10 minutos até a praia, tomar sol por duas horas, e depois subir uma montanha até a zona vulcânica de Olot? E ainda cruzar o castelo que o Dali construiu pra Gala no meio do caminho?
Pela exuberância de Aleph, de microcosmo de tudo que existe de mais bonito nessa vida, com gente brava mas verdadeira, eu declaro meu amor pela Catalunha.
Na minha completa repulsa a compromissos de toda ordem, encontro um pedacinho meu que concede do lado de cá: sim, eu poderia viver aqui.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

#47. Diarios de biciclieta: cool waves wash over me

25 de julho, 70km, SantCeloni-Arbucies
26 de julho, 50km, Arbucies-Girona 


Que caminho tomar ate a Suica?
A decisao nao e tao dificil assim: eu gosto das montanhas, da praia, da Espanha e dos ciclistas espanhois.
Onde eles estao, meu Jesus?
Acordo de ressaca no dia 25, e as 11 da manha estou pegando um trem que me leva na direcao dos Pireneus.

***

Existe uma rota de bicicleta famosa aqui na Espanha que se chama Transpirenaica. Ela comeca na costa Brava, perto de Barcelona, e termina em Hendaye, Pais Basco, atravessando o norte do pais. Toda a regiao e parque de diversao dos ciclistas fortes, a galera que tem as pernas magrelas de montanhista. Os Pireneus sao uma especie de mistica do ciclismo mundial - "ah, eu fiz os Pireneus...": essa e uma daquelas coisas que voce pode dizer naqueles momentos de querer ser gatinho na mesa de ciclistas.
Eu nao tenho a pretensao de pedalar extensivamente nos Pireneus. Guardo o projeto dentro de mim: o objetivo do ano que vem e fazer a Transpirenaica toda e depois continuar ate Santiago pelo caminho do norte, porque afinal de contas eu ando pretensiosa. Esse ano o que eu quero e chegar na bordinha, nos pre-Pireneus, na regiao vulcanica que esta em torno de Olot. Para chegar ali eu tenho que cruzar umas montanhinhas, mas quando as pernocas gritarem o socorro eu vou pra pra praia de novo, subindo a Costa Brava e entrando na Riviera Francesa, depois rumo a Genebra.

***

Estou sozinha. Estou sozinha nas montanhas. Estou sozinha nas montanhas de um parque natural catalao onde nao ha ninguem. Estou sozinha nas montanhas do Parc Natural del Montseny, nao tem ninguem e eu comeco a ter tontura, nausea e taquicardia. E oficial: estou com mal de montanha, ne?
Vou pedalando e parando. Pedalando e parando. Pedalando e parando pra respirar.
Olho pra baixo e tenho vertigem, mas e tao lindo que nao consigo parar de olhar.
Tres horas e meia, vinte e cinco quilometros depois, estou no alto da Serra de Montseny. Nunca subi tao alto assim. Nunca pedalei tao dificil assim. Estou feliz de estar fazendo o caminho que eu inventei, e vou descendo ouvindo minha musica preferida dos ultimos tempos e, que sendo do Spiritualized, e ao mesmo tempo uma porrada na cara e uma oracao gospel style: 

baby when you gotta sleep, lay your head down low. Don't let the world lay heavy on your soul. 'Cause when you gotta sleep, you gotta sleep. Cool waves wash over me: cool water running free. Lay your sweet hand on me - 'cause I love you, love you

Chego no pueblo seguinte e estou tao cansada que nao consigo pedalar ate o camping. Nunca me aconteceu isso na vida.  Desco e agora estou carregando a bike montanha acima, quando uma van para pra falar comigo.  O senhor catalao: te ves tan cansada! Entra que te llevo!
Dois quilometros depois estou na barraca. Ah, Espanha, cada dia eu te amo mais.

***

O dia seguinte e assim: uma estrada que baixa. 40km no que e provavelmente o lugar mais bonito onde ja pedalei: so ciclistas, e de um lado, a montanha; de outro, um canion esculpido pelas lavas de um vulcao, e onde hoje esta um rio.
Pedalar na encosta da montanha sentindo o cheiro e o barulho da agua? So fazendo pra saber.
Estou feliz, tao feliz por dentro.
Esse lugar foi o lugar que eu escolhi.
Esse lugar sou um pouco o que existe dentro de mim - a montanha, o ciclismo, a aversao ao turismo massivo.
Declaro meu amor, hoje, as montanhas da Catalunha, o lugar mais bonito onde estive nesta viagem.

#46. Diarios de bicicleta: all is full of love


21-23 de julho em Porto
23-24 de julho em Barcelona


:love

Eu e Judi estamos em Porto esperando pelo dia 23, que e quando nossos voos nos levam embora. Estou ansiosa, nao gosto de estar muito tempo no mesmo lugar. Minha bicicleta esta consertando, estamos a pe, e na tarde do dia 22 pegamos o busao ate os outskirts da cidade pra pedir caixas de papelao a grandes lojas de departamentos. Nope - IKEA e Decathlon dao o desole, aqui as pessoas reciclam as caixas, tchau, boa sorte. No pasa nada, tudo tem que estar empacotado dentro de seis horas de um jeito ou de outro, entao aqui estamos nos, desfilando no lixo do IKEA e roubando uns papeloes esquecidos. (cicloturismo nao e glamour). Uma fita autocolante, uma noite sem dormir, a bike inteira desmontada, amarrada, esvaziada, desgracada em sua nudez de pedacos espalhados no saguao principal do hostel enquanto todos os hospedes estao dormindo. Assim nasce a caixa tosquissima que esta abrindo por todos os lados e que com a qual eu deixo escada abaixo no hostel as 3 e meia da manha. O taxi pra me levar pro aeroporto esta esperando.
Ops... como nenhum taxi queria levar a bike, liguei pra esse so dizendo que teria uma caixinha em vez da mala. Ele esta bravo, mas vamos la, companheiro, abaixa o banco de tras, we can work it out. Foi. (e por isso que eu gosto tanto da Espanha ).Coloco a caixa no taxi, estou sem dormir e com fome mas estranhamente nao estou irritada. Life goes on, temos mesmo pouco controle sobre as coisas, e se uma coisa eu aprendi nessa viagem foi justamente isso - que tudo pode acontecer a qualquer momento.
Abraco a Judi, minha companheira de viagem nos ultimos 10 dias. Nao consigo encontrar nada pra dizer. Olho pra ela e acho que ela sabe disso tambem. Nada, nada pode dizer o que ja foi vivido; nao existe nenhum lugar textual que exprima o que so tem lugar no que ja foi e nao existe mais - como a construcao conjunta desta caixa horrorosa, por exemplo.
Judi e minha companheira e minha cumplice. Minhas reverencias, babe; so nos duas sabemos o que vivemos juntas.

***

Chego em Barcelona pra ficar na casa da Ju e do Michel por duas noites. Sao 10:30 da manha, a Ju esta na yoga e estou esperando por ela na escada, dormindo abracada na minha caixa querida. Claro que estou fedorenta, virada, engraxada e suada no calor de 40 graus que faz nessa cidade. A Ju sacou tudo, me da um beijo, dois quilos de comida e ja enfia minhas roupas imundas na maquina de lavar. Nos dois dias que passo ali ela encara sorrindo uns programas bucha em lojas de bici. Vai no correio pra enviar peso extra comigo. Ouve minhas descobertas sobre bicicleta, mulheres, iogurte e o ph vaginal. Prepara comida vegetariana e topa passear por Barcelona comigo em bicicleta, porque, meus amigos, eu realmente nao topo esse negocio de city tour em metro nunca mais. De noite o Michel chega do trabalho, coloca um sonzao maravilhoso pra tocar bem alto e vai me mostrando as fotos dele e os livros de fotografia que ele tem na estante. Na vespera da minha partida chegam dois amigos pra passar uns dias em Barcelona, e os cinco bebemos, conversamos, ligamos de Skype pra outros amigos em comum que moram em Nova York, falamos de bicicleta - claro - e do terremoto em Fukushima.
Parece ate que eles sao todos cicloturistas tambem, porque entendem direitinho, sem eu ter que dizer nada,  que tudo que eu preciso e uma tonelada de comida sem carne, sensacao de casinha e amigos, roupa limpa, o sentimento de que existe um lugar no mundo pra onde eu sempre posso voltar. Penso e concluo: amizade e isto - uma casa onde a gente sempre tem um cantinho.
Namaste, Ju.

***

No meanwhile, claro, eu tambem me apaixonei por um ciclista.
E ele, que ja foi pra casa em alguma parte do mundo, liga todo dia de manha e de noite pra mandar as buenas vibras, me pergunta coisas da bici e faz declaracoes de amor ciclisticas - ta comendo bastante macarrao, meu amor? Ah, se furar o pneu eu pego um aviao na hora pra consertar pra voce, minha brasileira...

***
Assim e que eu, eu nao tenho casa, mas tenho uma tonelada de amor em volta de mim.
Entao passo no El Corte Ingles e compro dois mapas de escala boa. O primeiro, Barcelona e Arredores+Pireneus Orientais. O segundo, Costa Brava Espanhola.
Amanha saio pra estrada. Agora nao tem rota pre-definida, agora nao tem "destino final: Santiago".
Agora quem escolhe o caminho pra chegar na Suica sou eu.

.



domingo, 21 de julho de 2013

#45. Diários de bicicleta/The bike diaries: dance your dreams

And then take yourself out dancing, to a club where no one knows you, stand on the outside of the floor until the lights convince you more and more and the music shows you. Dance like no one’s watching because they’re probably not. And if they are, assume it is with best human intentions. The way bodies move genuinely to beats, is after all, gorgeous and affecting. Dance until you’re sweating. And beads of perspiration remind you of life’s best things, down your back, like a book of blessings. (Tanya Davis, "How to be alone")

Era um dos dias de neve na Suíça, e eu assistia no meu quarto o pequenininho How to be alone enrolada no meu cobertor xadrez
E tem essa hora em que a menina esquisita do vídeo começa a dançar sozinha, vestido preto e óculinhos, linda, uma espécie de Mariana do outro lado mundo.
Embaixo do cobertor, então, eu adiciono um item a mais à minha lista de pequenos sonhos cotidianos.
: um dia eu vou estar tão feliz, mas tão feliz, que vou me dar de presente um vôo livre na pista de dança de algum lugar desconhecido do planeta. e neste dia em que o mundo fora de mim estará invisível, neste dia eu quero dançar mais ou menos igual aquela menina, dancing my dreams, o dentro virado do avesso, colonizando todos os pontinhos do universo à minha volta com o meu império interior.

***

Então ontem saímos para a noite de Porto - eu, Judi, os amigos belgas. Um complexo de 4 ruas, dois milhões de bares e clubes com todos os tipos de músicas possíveis e imagináveis. Uma, duas, três cervejas. Uma, duas, três da manhã, e a gente entra num bar de hip hop.
Não quero sair daqui.
Mas são quatro da manhã, o bar fechou. Judi e o belga querem dar mais uma volta. Eu não, eu quero ficar sozinha.  Tchau. O belga está preocupado, "don't worry, I'm ok!", eu respondo sorrindo. A Judi é minha companheira linda e já entendeu que eu estou pedalando uma montanha em pensamento. Dobro a esquina e entro num club lotado.
São 4:15 da manhã e está tocando punk rock. Eu estou feliz. Home, sweet rockn'roll home.

Então eu danço. E rola um monte de old punk rock misturado com um pouco de indie moderninho. Quando começa Blondie eu tenho vontade de chorar nesse meu único vestido florido e havaianas que estou vestindo há um mês. Estou pulando da maneira mais ridícula no meio da pista, e nem sei quem está do meu lado. Só danço, danço, danço, e já tem um tempão que estou assim quando parece que todos os homens do mundo vêm pegar na minha cintura, falar sei lá o que no meu ouvido, me puxar pra dançar. Nunca fiz tanto sucesso como hoje, com esta roupa bizarra e essa total ausência de batonzinho.
Não, hoje não. E resisto até ao homem barbudo mais lindo do mundo, que de camisa xadrez vem falar uma coisa que não entendo no meu ouvido. Nope. Nem mesmo você, gatinho.

Percebo um cara mais velho que eu, uns 40 anos, dançando com os bracinhos quando começa a tocar I fought the law, e nos cumprimentamos com o olhar. Sim, entendi. Você também é do rockn'roll, né? E a gente passa dançando perto a noite inteira sem trocar uma palavra. Os meninos continuam me puxando, mas agora eu nem abro o olho pra falar que não. De vez em quando levanto a cabeça só pra encontrar o olhar do meu vizinho punk. E quando toca Sound and Vision a gente se abraça, "I love it, I love it", "I know!!!!! Low's my favorite too!!!!!!!"
Não sei nada desse cara. Só que ele adora o Bowie de verdade.
 
É a última música. A luz acende, e eu abro espaço até a porta entre aquele monte de meninos da pista que ainda está atrás de mim. Eu realmente devo ser a pessoa mais bizarra desta cidade. Esta é a única explicação que consigo encontrar pro meu sucesso inesperado.
Encontro Porto ensolarada do lado de fora. São oito e meia da manhã e eu paro pra tomar um café com leite sozinha na padaria, celebrando melhor noite de rockn'roll da minha vida.


 *How to be alone

* Bowinho do meu coração 

sábado, 20 de julho de 2013

#44. Diários de bicicleta: a perfeição da natureza

14-19 de julho/2013, 280km de Santiago de Compostela até Porto

Somos eu e Judi agora na estrada. Estamos pedalando uma das rotas de peregrinação a Santiago no sentido contrário. À medida que vamos descendo o Caminho Português em direção à fronteira encontramos peregrinos com mochilão indo ao lugar que a gente deixou. Vou baixando, baixando, e Santiago vai se dissolvendo. A memória do Caminho    essa pedrinha de açúcar eu jogo agora na água     spluft        desapareceu.  Sem querer essa viagem já faz parte de mim, se perdeu em algum lugar que é precisamente eu mesma. 

Começa agora uma espécie de mini-viagem depois da viagem. A sensação é esquisita, porque é frouxa:
- Eu e Judi não buscamos nenhum destino final de peregrinação.
- Não temos prazo pra chegar, não temos acomodação em nenhuma das cidades do percurso, não temos nenhum mapa.
- Somos duas mulheres na estrada.
- Temos uma barraca pra duas pessoas.
E qual é nosso objetivo?
Praia, sol, cerveja e coisas interessante de toda sorte. Em quantidades estratosféricas, se possível.

Vamos devagarzinho. Quando a Judi vai na frente, olho pra ela e depois de uns dois dias percebo impressionada que todas - e quero dizer isso mesmo, TODAS - as pessoas por quem ela passa param para assisti-la desfilar em bicicleta. É realmente um dominó de cabecinhas espanholas e portuguesas girando na direção da minha companheira de pedal.
A Judi não é só mulher, mas é mulher, e negra, e ciclista, num mundo dominado só, e exclusivamente, por meninos branquelos europeus. Me dou conta que estou pedalando há um mês e nunca encontrei nenhum ciclista negro. Mulher sozinha, só a Judi. E eu. E sabe o que? Temos a mesma bicicleta.
Não é à toa que as pessoas estão sempre gravitando em torno da gente.
Power to the people.
Sinto que somos as mulheres mais lindas e poderosas do planeta Terra.

Eu e Judi, o trem das mulheres segue lentamente, parando em praias e pegando ferrys para parques nacionais espanhóis. Além da alegria geral de estar nos lugares mais lindos do mundo, sou sortuda porque estou virando profissional da bicicleta. A Judi já está pedalando há sete meses - Brasil, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Espanha (!) - e me ensina tudo sobre cicloturismo. De alimentação pra mulheres a mecânica de bike, de dor de barriga na estrada a empacotar os alforges, até a difícil questão do ciclo menstrual e ciclismo... Estou tendo o melhor curso prático do mundo.
-" Thanks, Judi. Again!"
- "No worries! I'm happy that I'm putting a smarter cyclist on the road!".
Com a Judi estou sempre rodeada de mecânicos de bicicletas, ciclistas da comunidade ciclística, sempre informada de onde está rolando Massa Crítica, assistindo vídeos de pessoas que estão dando a volta ao mundo e que ela encontrou por aí...
E, Deus que me perdoe, esse é o esporte dos sonhos. Um monte de meninos legais, mochileiros e lindos.
É um batizado. De visitante, agora sou mais uma habitante do Maravilhoso Mundo de Cycleland. Sinto que sem querer encontrei um lugar no mundo.
Adoro estar perto de outra mulher como eu, com projetos parecidos com os meus, que adora ser mulher, e que adora desafiar as caretices sobre o que é esperado de nós mulheres.
Sou a pessoa mais feliz que existe porque entro no mundo do ciclismo através de uma mulher.
Namastê, Universo.

A natureza, a bicicleta e a Judi aliviam minha saudade do passado. Estou de volta ao presente, graças a Deus. E de recompensa, a inspiração: comprei minha passaginha. Dia 23 de julho chego em Barcelona, e daí continuo pedalando mais 25 dias até Genebra. Judi segue até Barcelona comigo, mas de lá nos separamos.
Por enquanto a gente continua aqui, em Porto, fazendo nada.
Claro, com dois belgas que, vendo a gente chegando cheias de graxa na cara, passam o dia perguntando e anotando nossas dicas sobre Santiago enquanto pedem mais uma garrafinha de cerveja pra gente.
Power to the people.



*Foto da Judi enquanto pegávamos o barco em direção às Ilhas Ciés, no Parque Nacional das Rias Baixas, Espanha


* Ilhas Ciés, no Parque Nacional das Rias Baixas, Espanha


* Nossa casa em Caminha, Portugal


* Glamour zero: esse é meu bronzeadinho ciclista-caminhoneiro-shortinho, enquanto deito na mesma toalha que vou usar pra tomar banho mais à noite. Mas a praia em Caminha estava linda.







sexta-feira, 19 de julho de 2013

#43. Diários de bicicleta/The bicycle diaries: Nuevos Caminos

(English version below)

Saw you at a party
You asked me to dance
Said music was great for dancing
I don't really dance much
But this time I did
And I was glad that I did this time

And the song said "Let's be happy"
I was happy
It never made me happy before
And the song said "Don't be lonely"
It makes me lonely
I hear it and I'm lonely more and more

Where I belong, where I belong (Yo La Tengo, "Last Days of Disco")


Percebo agora que o Caminho não é só chegar. É saber como partir.
Nada é pra mim mais difícil que isso.

Estive em Santiago por três dias inteiros. Um coração levinho. O tempo não existe. Aqui estou eu, nessa cidade linda, dormindo numa cama digna de novo, e todo dia eu saio escondida caminhando sozinha pra assistir os peregrinos que chegam da à catedral. Sento e assisto. Gosto de ver todo mundo feliz. Eu sei como é, eu sou dentro da sua alegria, você esteve e é dentro da minha.
Depois de 2 anos de inverno suíço, nesta viagem eu tive que reaprender de novo como encostar em gente. E nos meus últimos dias no Caminho de Santiago eu literalmente beijei todo mundo que apareceu pela frente, todos os ciclistas foram religiosamente abraçados e esmagados por mim, "eu te amo" pra geral nos albergues, lágrimas de amor para todos os bikers, e meu inglês, meu francês e meu espanhol macarrônicos nunca estiveram melhores. Não tenho mais medo de nada, e inflo com orgulho meu peito de pessoa bizarra, emocional e pegajosa. (Não existe no mundo nenhuma palavra que expresse minha gratidão eterna à Espanha por ter me curado do coração gelado que eu cultivei em Genebra). Não quero estar em nenhum outro lugar. Quero que tudo pare, e quero viver pra sempre aqui, dentro deste segundo que é o momento em que eu cheguei em Santiago.
Até que chega o dia em que meus amigos bombeiros das Canárias têm que ir pra casa.
Insuportável. Nem eu mesma me aguento hoje. Estou chata, triste, coração partido, me sentindo traída, com vontade de morrer, olhando o relógio a cada 15 minutos. Ligo assim que o avião deles chega em Tenerife, desesperada, simplesmente pra descobrir que escutar a voz dos dois me deixa mais deprimida.
Não consigo dormir. Não consigo ficar acordada. A cerveja me dá enjôo e vontade de chorar.
Porque foram esses meninos  que me enfiaram contra a vontade todos os dias nos rios mais gelados do mundo e fizeram meu joelho sarar. David pedalou montanha acima lado a lado comigo, falando das Canárias e da vida, e foi com ele que eu cheguei nos lugares mais altos do Caminho de Santiago. A gente comeu polvo à galega e bebeu vinho, eles me fizeram rir, me ensinaram a limpar a bicicleta de manhã, encararam hostel trash, e eles me viram na minha mais alta fedentina e engraxamento ciclístico sem nunca deixarem de me amar. Aliás: sempre falaram que eu e Judi éramos as ciclistas mais lindas do mundo.
Agora eles foram embora e eu não sei quando e se vou encontrá-los de novo. Não sei o que fazer. Não tem mais Santiago, estou perdida, abro o mapa-múndi e não consigo escolher o meu próximo destino ciclístico no planeta Terra.
Olho pra Judi, devo estar com aquela cara de cachorro abandonado na chuva, e pergunto se posso acompanhá-la até Porto. A ideia é matar tempo em 250km light e esperar a inspiração de nosso Senhor Jesus Cristo. Se ele ajudar, chegando em Porto eu já vou ter decidido e comprado uma passagem de avião.

Somos agora apenas eu e Judi on the road. Não sei como é pra ela, mas eu nunca me senti mais sozinha.


*Nós 4 em Cycleland, prontos pra sair e pegar as montanhas
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Saw you at a party
You asked me to dance
Said music was great for dancing
I don't really dance much
But this time I did
And I was glad that I did this time

And the song said "Let's be happy"
I was happy
It never made me happy before
And the song said "Don't be lonely"
It makes me lonely
I hear it and I'm lonely more and more

Where I belong, where I belong (Yo La Tengo, "Last Days of Disco")


I realize now that it is not only about heading all the way to Santiago. It is also about learning how to let it go.

We were in Santiago for three days, and in these three days my heart was nothing but joy. Timelesness. Here I am, sleeping in a proper bed, resting, and every single day I walk by myself to the cathedral to watch the pilgrims who are arriving. "I've been there", and I feel part of their happiness, I am inside their contentment, they are inside of mine. Music, friends and sun... After 2 years of cold, long winters, I had to learn again how to touch people, and in this camino I kissed literally everyone of the cyclists I met. I told everyone that I loved them, I hug, and kiss everybody again, and my English is perfect, I do speak French and Spanish, I stopped being afraid of staying close and being the crazy emotional person I am. (Thanks, Spain, you definetely fixed me!) I want nothing but that. I want to stop time      now          and live eternally inside this very one second when I first got my feet in that city.
But it came the day when our firefighter friends from the Canarian Islands had to leave back home.
I suddenly became hopeless. Jesus, what a miserable day. Broken-hearted. Betrayed. Time now is fucking slow and I call them as soon as I realize their plane landed in Tenerife. I regret right away: hearing their voices makes me even more depressed. Nothing can do with my grief.
These guys were the ones who forced me into the ice-cold rivers and helped me to fix my knee. David was riding by my side in the last two days of the camino, the two of us up the worst mountains, and he was the one who shared with me the pleasure of arriving up there. We ate octopus and drank wine, we laughed, we cleaned our bikes in the morning, we struggled with bad and good hostels in our way, they saw me eating like a dinosaur and wearing my worst stinky clothes, but they never ever stopped loving me. We used to split going downhill, but we always knew we would finally get together in the end of each road.
Now they are gone and I don't know when and if I will see them again. I don't know where to go next. I am lost, so I check the world map to choose the next location to bike. Only biking can fix me. But I simply can't make any decision. I can´t find a place in the planet where I felt like cycling.
So I look at Judi with my disgusting, wet-dog-face and ask if I can I follow her 250km into Portugal.
The idea now is to kill some time riding until Porto. There is a main airport in that city. May God help me with inspiration - hopefully I will be able to make a decision and arrive in Porto with a plane ticket to take me and my bike to ride somewhere.
Now it is only me and Judi on the road. I don't know about her, but I have never felt more lonely.


*The four of us in Cycleland, early morning, getting ready to face the mountains




quinta-feira, 11 de julho de 2013

#42. Diarios de Bicicleta/The bike diaries> Random Access to Memories

{English version below}

Santiago de Compostela
27 dias, 2010km em bicicleta

Cansada, tao cansada. Minha perna doi, meu Jesus, mas pelo menos meus joelhos estao bem.
E se voce me der uma cama e meio quilo de macarrao eu ja fico feliz.

Chegar no fim da peregrinacao e uma sensacao tao forte e tao pessoal que eu nao me atrevo a descreve/la aqui no blog. O unico jeito de saber e vindo pra ca.

Sem ilusoes. E bem trash ser cicloturista e vegetariana. Carreguei 1kg de whey protein por 2000km, e alem de pesada, ela fede, e feia e tem gosto do mais puro mal me quer. Mudei minha dieta e comecei a comer frutos do mar na Espanha, porque tenho arrepios so de pensar em enfiar um monte de porcaria processada no meu corpo todoos os dias.
Mas nao vem sem custo.  Fico triste de saber que estou comendo polvo, camarao e lula numa viagem que tem um que de espiritual. Saudades das minhas lentilhas queridinhas.

A melhor novidade da viagem foi que o Daft Punk lancou um disco maravilhoso com um hit que pegou geral na Europa. Em vez de entrar no mercado e ouvir Ai Se Eu Te Pego, em todo lugar que eu estou ta rolando Get Lucky. Melhor do que isso e impossivel.

Meu coracaozinho hipster chorou quando eu quebrei os meus lindos Ray Bans. Por outro lado, meu coracao ciclista deu um sorrisao no dia que eu adquiri meu primeiro par de oculos esportivos. Eles sao lindos, laranjas, confortaveis, diminuem a irritacao no meu olho. So que eu me sinto tao ridicula neles que nao me atrevo a olhar no espelho.
Voce pode sair do hipster world, mas ele nunca sai direito de voce.

Como diz a Judi, meus dias de gatinha ja se foram ha seculos. Bronzeado bermuda e camisetinha na alta, unhas sem esmalte ha dois seculos, e os meus cabelos... sem comentarios. Pra nao dizer nada da sobrancelha e do cheirinho das roupas de ciclista lavadas com xampu.
Mariana, mas pode me chamar de caminhoneira da bike, baby.

Mas nada, nada paga o que a bike faz pelo seu corpinho.
O paraiso e este lugar onde voce perde peso continuamente comendo 4000 calorias por dia.
Bicicleta querida, e por essa e por outras que eu nunca vou deixar de te amar.



Santiago de Compostela
27 days, 2010km on my bike 
I feel tired. I feel so tired. My legs hurt, but my knees are ok.
Give me a bed and 600g of pasta and I am fine.
Living and being happy has never been so simple.

The arrival at a pilgrimage site is such a strong and personal feeling that I don't dare to describe it in my blog. You should try it out yourself.

Not easy to be a vegetarian bike tourer. I carried 1kg of whey protein all the way, and it is heavy, it looks bad, smells bad and specially tastes horrible. I decided to eat seafood in Spain, for the idea of having processed, industrialized protein every single day simply terrified me.
Yet it is not painless. Everytime I think I am eating a cute octopus I feel sad. But the idea of coming back to my chocolate protein makes me feel worse, so I keep carrying on my octopus diet.

My hipster heart broke when I lost my Ray Ban sunglasses. My cyclist heart smiled when I got sporty, orange sunglasses made for cycling.
They are comfortable, they look professional, but I can't stare at mirrors without finding myself the most ridiculous creature on Earth.

Thanks God the Daft Punk has released a great album just before I started my trip. Instead of Ai Se Eu Te Pego, I have Get Lucky playing in every corner. It can't get any better than that.

As my friend Judi puts it, my modelling career is over. I have a funny, cyclist suntan. Don't remember the last time I put on nail polish. My hair is... well, whatever. Let alone shaving and smelling good. Call me bicycle monster, babe.

But... Nothing is better than cycling when it comes to your body. I eat like a monster and don't stop losing weight. God bless my bicycle ride.


terça-feira, 9 de julho de 2013

#41. Diários de bicicleta: dias 10 e 11/The bike diaries: days 10 and 12

[English version below]

Nothing ever stays the same. Nothing´s explained. The higher we go, the longer we fly. Cause this is it for all we know. So say good night to me. Lose no more time - no time - resisting the flow. ['Ohm', Yo la Tengo ]

Dois dias viajando com Judy e os dois bombeiros lindos.
Enfrentamos a etapa mais dura do caminho, montanha tenebrosas, e normalmente eu chego em casa dormindo em pe.
Gosto dos meus companheiros. As vezes nos perdemos nas descidas, mas sem querer nos encontramos 20km depois. Estamos todos por nos mesmos, e em dois dias nos separamos. Existe uma tristeza e um compromisso de liberdade nisso, e por isso nao fazemos planos. Eu gosto disso aqui. E percebo que na vida, tambem.
E um eterno estado de graca, e as vezes sinto que o tempo nao existe. Que nada existe. Que a vida nao passa disso, de um caminho.

Estou a um dia de Santiago e meu coraçao nunca esteve mais leve.
Nao tenho mais medo das montanhas, e agora rezo pra encontrar umas subidinhas.
Nao tenho vontade de matar as pessoas.
Meu joelho se recuperou com banhos diários nos rios mais gelados do mundo.
Conheci tanta gente interessante que parece que 11 dias foram 11 anos. E com meus últimos amigos do caminho aprendi coisas importantes, como: é preciso pedalar sem calcinha/cueca, senao rolam assaduras; o mais importante nao e pedalar 100km por dia, mas sim parar pra enfiar o joelho no rio e beber cerveja, e rir, e dormir na grama; um dia de descanso a cada 7 é essencial, mesmo que voce nao saiba.
Parei de fumar.

E como nao sei o que fazer, e como ja nao tenho casa em lugar nenhum, e como sinto que a unica coisa que consigo fazer agora e andar de bicicleta, decidi que vou continuar pedalando.
Sigo pela costa de Portugal até Lisboa. Mais 1000km mais 15 dias. Depois, quem sabe, pego um aviao pra Berlim e faço mais uma viagem pelo Alemanha.
A diferenca e que agora passa uma coisa diferente. Nao quero pedalar pra resolver nada, nem pra aprender cicloturismo, nem pra explorar o mundo, e nao sinto mesmo que tenho mais que aprender a fazer cicloturismo. Isso eu ja sei, e do meu jeito.
Agora eu me sinto vazia.
Quero pedalar por mim mesma.

Acabam aqui, portanto, os diários de bicicleta da minha viagem pra Santiago. Hora de começar novas histórias.




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Nothing ever stays the same. Nothing´s explained. The higher we go, the longer we fly. Cause this is it for all we know. So say good night to me. Lose no more time - no time - resisting the flow. ['Ohm', Yo la Tengo ]

I´m a day away from Santiago and my heart has never been that light in my entire life.
I´m not afraid of the mountains anymore.
I´m not tired of people anymore.
My knees got better with daily baths in the cold rivers of Galicia.
I don´t remember having met so many interesting people in such a short amount of time... 11 days were worth more than eleven years. My new friends have taught me so much...: you should not ride wearing underwear, 100km a day should not be a goal, you should rest every 7 days or so.
I quit smoking for good. I don´t change my love for mountains for any cigarette in the world.

As I have no home, and as I don´t know what to do, I will keep cycling. I will follow the coast of Portugal, at least 1000km more. After that, I might cycle in Germany. starting from Berlin.
Now I´m not cycling to find out about myself or to sort out my stuff. I am not cycling for the adventure, and I don´t feel I need to learn something.
I´m just cycling by myself.
That´s the end of these bycicle diaries about my journey to Santiago de Compostela. Time to start writing new stories.