quinta-feira, 24 de setembro de 2015

#76. Relato sobre minha experiência com a meditação


Fiz umas aulas de pintura japonesa da última vez que estive em São Paulo, em julho. Entre uma conversa e outra, eu e a professora acabamos falando sobre meditação, e ela me pediu pra escrever um relato das minhas experiências para dividir com outros alunos que queriam começar a meditar. 
Nos últimos dois anos andei sem casa, dividindo o tempo entre a Índia, o ashram em Portugal e a vida com a sangha na Espanha. Meditar virou meu café com leite de cada dia. Aqui vai o texto sobre meditação que entreguei pra professora, junto com uma promessa: depois de voltar da minha viagem de bicicleta que começa amanhã (sim! Alemanha+República Tcheca  - no frio!) vou dedicar um tempinho pra falar desses dois anos por aqui.

 

1. Sabão em pó, banana e leite


Não foi da noite pro dia. Quer dizer: foi. Mas demorou quinze anos. Depois demorou mais dois. Mas quando aconteceu, precisou de menos de um segundo.

Ouvi falar em meditação pela primeira vez quando tinha uns quinze anos, ainda na década de 90. Vivia em Curitiba e uma amiga que fazia tai-chi me disse algo sobre umas práticas de relaxamento e respiração. Naquela época, bem-estar e espiritualidade não eram moda. Ninguém fazia Pilates, ninguém praticava yoga e meditação era sinônimo de budismo. Quem sentava numa almofadinha em silêncio, portanto, estava ali para alcançar a iluminação. Sendo uma dessas pessoas bem ordinárias e prosaicas, nunca achei que pudesse passar 20 minutos em silêncio, concentrada, e menos ainda me iluminar. E então foi assim, derrotada pela minha própria auto-imagem, que fechei a porta sem nem tentar e me escondi ali, atrás dela, espiando de longe os meditadores todos do mundo como se eles tivessem algo especial que sem sombra de dúvida devia estar faltando em mim.



Quinze anos mais tarde as coisas tinham mudado bastante. O ano era 2011 e agora todo mundo que eu conhecia fazia yoga – inclusive eu. O David Lynch já tinha publicado um livro relacionando meditação e processo criativo, e volta e meia saía algum artigo na internet informando que a ciência reconhecia que meia hora de silêncio melhorava as funções cerebrais, a concentração, o sono. Sentada na sala do meu apartamento, eu arrumava as malas pra me mudar para a Suíça enquanto um amigo do trabalho tomava uma cerveja na varanda, comentando sobre suas experiências com a meditação.  Ele descrevia um universo de aventuras visuais e auditivas, um silêncio cristalino, chuvas de insight e compreensão profunda sobre a própria existência. “Também posso”, concluí, ouvindo o amigo normal, e naquele dia resolvi que iria atravessar a porta e colocar o pezinho para dentro daquele mundo apetitoso.  Anotei no caderninho: chegando em Genebra, minha primeira providência vai ser procurar um grupo e aprender a meditar.



Não um, mas todos deste mundo. Nos dois anos seguintes, sentei nas almofadinhas ao lado de centenas de meditadores na Suíça e na França. Pratiquei Vipassana religiosamente às terças e quintas, cantei horas e horas de mantra junto com outras pessoas para me purificar e concentrar os pensamentos, fiz cursos para desenvolver a mente compassiva com uma monja respeitada dentro da tradição do budismo tibetano e – ainda com os tibetanos – passei a frequentar grupos de meditação todos os sábados. Não satisfeita, me aventurei a sentar de frente para a parede num templo subterrâneo parisiense onde uma mestre me introduziu à meditação zen.


Não deu certo. Mais: não deu certo nenhuma vez. Longe disso. Fui a  maior heroína derrotada da história das religiões orientais. Nenhum silêncio cristalino, nenhuma sensação mística transcendental. Minha cabeça virou uma maquininha, e era só eu sentar que começava a lista do mercado: “sabão em pó, duas caixas de leite e banana... Será que ainda ficou maçã na geladeira”?

No dia da meditação zen eu dormi, bati a testa na parede, atrapalhei a concentração de todos os demais meditadores super sérios vestidos de quimono preto e morri de vergonha.



2.  O tempo além do tempo 

E então um dia aconteceu.  Inesperadamente, sem aviso e nem glamour, num retiro silencioso que estava sendo transmitido ao vivo pela internet. No telão que montamos na sala de uns amigos, ouvi o mestre lá do outro lado do mundo dando as boas-vindas e introduzindo os ensinamentos. Eu tinha trinta e três anos na noite do dia 11 de setembro de 2013.

As pálpebras que fecham um olho de cada lado, de uma só vez, e na terceira frase também as outras cortinas entre o meu corpo e aquilo que está do lado de fora da minha pele caíram, todas as janelas se trancaram e eu comecei a habitar o dentro de mim pela primeira vez.  E a sensação foi assim: você tem um quarto em casa que não foi aberto nos últimos trinta anos. Nem no inverno e nem no verão, e pode parecer que é só o hábito de não perder tempo ali que te afasta, mas na verdade existe, misturado com ele, esta reação de evitar os lugares desagradáveis. Até que um dia alguém te empurra, você entra sem querer e descobre que a maior parte das coisas que você tinha lá dentro apodreceu.

Este quarto é você. E quem entra também é você. As coisas que você encontra são você. A porta é você, a travessia é você, e o corpo que te assiste dando o passo é você. E o tempo no qual todos os gestos acontecem, este tempo acontece dentro do espaço consciente daquilo que você é.

No silêncio, todos os quartos esquecidos e tudo aquilo que está dentro dele vai aparecendo e sendo revivido na experiência do corpo daquele que medita. Estar vivo e aberto é a senha para penetrar estes lugares secretos. Meditar, assim, não faz parte dos nossos hábitos de agir a partir de uma intenção. É preciso ligar outro canal. Não medito pra me acalmar, nem para controlar os pensamentos, nem pra pensar coisas boas ou descobrir algo. Entro na água, atravesso a arrebentação, chego no fundo, deito de costas e vou boiando. Passam ondas e passam as correntes, chegam os peixinhos mas eu não abro o olho e não sei onde vou parar. É o mar quem decide. Mas a experiência é minha, e só eu posso sobreviver e explicar para os outros como é sair boiando pelo oceano selvagem dos vários mins.

No primeiro ano meditei todos os dias, muitas horas por dia. Sentava sozinha em silêncio e deixava tudo acontecer sem me mexer nem um pouquinho. Tive a sorte de encontrar o meu mestre muitas vezes, também, e ele me orientava. Às vezes vinha raiva de alguém, e eu ficava com a raiva – vivia com, não apesar dela: sem tentar fingir que não estava acontecendo, sem tentar reprimir e nem substituir por algum sentimento mais nobre. Sentia os lugares do meu corpo onde a raiva se expressava, e às vezes ela era uma explosão de rancores tão forte que era como se não existisse mais nada além das injustiças todas que já sofri nesta vida. E de repente a raiva passa. Eu continuo. Às vezes aparecem os amigos, às vezes aparecem os arrependimentos, as palavras que nunca falei e que nunca mais vou poder falar para o meu avô, e muitas vezes vem tanto amor que parece que o ponto no meio do meu tórax está com um buraco que não para mais de vazar.

Com o tempo, a prática da meditação foi ficando tão normal que começou a transbordar. Existiam as horas de sentar em silêncio, sozinha, mas me dei conta que, inconscientemente, tinha passado a praticar o mesmo princípio à minha existência ordinária. Em vez de reagir, foi sem querer que comecei a observar. Quando alguma coisa requeria um gesto ou uma ação, o gesto e a ação vinham, mas sem o mesmo tipo de investimento emocional de antes. Como a raiva, no colchãozinho: vem, fica, abre a porta e vai embora.

Eu continuo.


3. Depois agora

Esparramada, como se tornou, entre os momentos de retiro em cima da almofada e a hora de pagar a conta na padaria, já não sei discernir com tanta clareza quais são os benefícios que a meditação me trouxe. Para dizer bem a verdade, nunca procurei meditar por causa do ponto de chegada, mas por causa da travessia. E olhando para trás, foi tudo travessia, mesmo a solidão embalada pela lista de mercado. A única diferença é que eu tentava de todo jeito fazer a lista de mercado desaparecer, em vez de deixar a banana e o sabão em pó desfilarem, simplesmente, sem prestar tanta atenção.

Existe um mantra que diz: gate gate paragatte parasamgatte bodhi svaha.  Uma das traduções possíveis é: “sempre ser, sempre tornar-se Buda”. O que ele anuncia é essa linha que nunca começa e nunca termina entre o ser e o tornar-se. Ao longo dela, a existência é ininterrupta e orgânica, um começo se junta com um fim, e as ideias de nascimento e morte não conseguem descrever aquilo que só acontece como transformação. O universo, dizem os físicos, continua em expansão.

Medito porque, quando fico sozinha e em silêncio, caminho e sou caminhada pela existência como quem anda numa sala de espelhos em que tudo reflete tudo. Cada imagem me devolve em regressão infinita, e  acho que nunca vou chegar ao fim de mim mesma. Não no desta daqui, a pequena. No da outra.

Para entender, é preciso, talvez, dar um passo para o além da mente lógica. Para ir além da mente lógica, minha alternativa é meditar.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

#75. Minha bicicleta nova, os fins e os começos/My new bicycle, the ends and the beginnings

[English version below]

Hoje comprei uma bicicleta de viagem. Minha nova companheira vem pra substituir a antiga, aquela que me atravessou por mais de três meses em cinco mil quilômetros divididos entre a França e a Espanha. Há dois anos a viagem terminava e a gente tomava o avião de volta pra Suíça. Três meses depois ela seria roubada na frente da biblioteca da universidade, em Genebra.
Quem diria.
Minha nova bicicleta custou metade do preço daquela outra. É grande, pesada, robusta, barata, alemã, grosseira, artesanal. Comprei de um velhinho que não fala a mesma língua que eu e que organiza excursões ciclísticas na Tailândia, em Cuba e na Europa. Ele monta todas as bicicletas com os mesmos componentes, pinta os quadros do mesmo verde fosforescente e prega em cada um deles o mesmo adesivo. Velociped. Quando o verão acaba e a temporada de excursões termina, ele abre o barracão, coloca as velhas à venda e começa a renovar a frota pro ano seguinte.
A bicicleta que eu escolhi tem três anos. Não sei por quais países ela já andou, mas tenho a sensação de que foram muitos. Ela não vem nova como a outra, intocada, cinza sexy, reluzente. Eu, também, já não sou como aquela outra de mim, que subia pela primeira vez na bike prata como quem descobre que pode ser ciclista e viajante.
Em setembro de 2015, eu e minha bicicleta caminhoneira verde já começamos gastas. Cheias de anos em países e estradas. A manutenção é boa, mas se você olhar direitinho nas juntas, dá pra ver que a gente contém quilômetros.

* * *

Aqui na Alemanha, me dou conta que o outono chegou porque no fim da tarde preciso colocar o gorro pra voltar pra casa. Sentado do meu lado na cama, o Marvin vai desenhando o nosso caminho: amanhã levamos as bicicletas de carro pra Berlim, e de lá a gente sobe pedalando na direção da costa, fronteira com a Dinamarca, depois pra Leipzig, pra Dresden, de volta pra Marburg e por fim pra Frankfurt.
Quem diria.
Que de Uma eu seria Dois na estrada, procurando com ele uma cidade pra gente morar . Que um dia eu teria que aprender alemão, esta língua terrível e marciana. Que sem perder a lucidez eu aceitaria pedalar no norte da Alemanha no outono, e não no verão. Que esta minha nova viagem de bicicleta, mais curtinha e improvisada, seria pra criar raízes, e não para abrir asas e destruir projetos de estabilidade em todas as direções. Que eu estaria terminando o livro sobre aquela viagem de bicicleta, a outra, na estrada, lado a lado com o amigo que virou namorado, e que eu conheci lá atrás, quando pedalava sozinha na Andaluzia.
Eu sou outra e minha bicicleta agora é verde. O cabelo do Marvin cresceu, e a barba também. Mas a bicicleta dele ainda é aquela de dois anos atrás. Grande, pesada, robusta, barata, grosseira, artesanal.
Azul.
Alemã.


* * *
[ENGLISH]

I bought a bike today. My new two-wheel friend comes to replace the old one - that which once crossed through and with me three months, five thousand kilometers across France and Spain. Two years ago we were finishing our journey and taking the plane back to Switzerland. I half survived, but the bike was robbed in front of the library a couple of months later, in Geneva.
No one could tell by then.
My new bicycle is much cheaper than the older one. It is huge, heavy, tough, cheap, German, rough, handmade. I got it from an old man that speaks a language I can't understand. His job consists of taking people into bike tours around Thailand, and he puts the bicycles together himself. Each one of them has the same components, every frame is painted with the same fluorescent green and carries the same sticker from that same company. Velociped. When the summer is over, the bike touring season comes to an end. He opens the doors, outs the old bikes on sale and start to prepare new ones for the coming summer.
The bike I chose is three years-old. I know nothing about the countries where she has been too, but I sense she's quite an experienced one. She does not come to me like my previous partner - brand new, untouched, light gray, shiny-sexy. Me neither. I'm not like that old Mariana that rode a silver bike for the first time with the glow of someone who is starting to discover herself as a cyclist and a traveler.
In September, 2015, my bicycle and me have a second-hand beginning. Full of countries and roads, we are. Yes, we were well maintained thus we're in good shape. But if you look a little closer, then you'll notice our inside is just too full of kilometers.

* * *

Walking the streets of Germany, I realize autumn has arrived because by the late afternoon I'm going crazy without a hat and gloves. Seating by my side on the bed, Marvin draws our map in the air. Tomorrow we take our bikes to Berlin by car, and from Berlin we cycle up towards the coast, close to the border with Denmark, and then Leipzig, Dresden, back to Marburg, Frankfurt.
I couldn't tell by then.
That from One I would one day hit the road as Two, looking for cities where we want to live together. That one day I would really have to learn German - this terrible language that seems to have been created in Mars. That I'd be crazy enough to say yes to bike touring in the freezing German autumn. That this new bike tour of mine, short and improvised, would come into place as a way to lay roots, not as the spreading of wings wide, for the other one meant the destruction of every further possible illusion of stability. That I would be finishing the book of the past bike tour on the road, side by side with the friend that became boyfriend. The same one I met back then, two years ago when I cycled by myself in Andaluzia.
I'm a different self and my bike now is green. Marvin's hair has grown, and so did his beard. But his bicycle is still the same he had two years ago. Huge, heavy, tough, cheap, rough, handmade.
Blue.
German.