terça-feira, 27 de maio de 2014

#65. Exílio

Porque na verdade não é o Tudo. O que mata são os últimos momentos.
: não a maratona, mas os cinco quilômetros pra completar os 42km. Não o mês inteiro, mas as três horas antes do prazo. Os dois quilos que faltam pro fim da dieta; a palavra que não está lá pra fechar a frase comme il faut; a vontade de fazer xixi vira insuportável na hora de não conseguir encaixar a chave na fechadura - o que faz verter do copo, a gente sabe, é a última gota d'água.

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Eu tenho uma passagem e uma mala com as minhas coisas. Por isso é que eu fecho os olhos e tento atravessar o tempo nesses últimos dias até o 31 de maio. Prendo a respiração, e é 7:30 da manhã de um domingo deserto na fronteira quando um menino francês bêbado pobre e com ódio quebra uma garrafa de rum vagabundo em mim. E enquanto eu fecho o livro do Murakami pra ver a minha perna fodida, então ele joga café quente na minha cara, cospe e grita: ça c'est pas la Suisse! O velho suíço que está a dez passos vem mostrar solidariedade compartilhando que o meu destino é a comprovação da tese de que esses-marginais-e-esses-ciganos-se-juntam-aqui-pra-roubar-a-gente-em-Genebra.
Uma semana depois a minha bicicleta é roubada.

Tentando atravessar o tempo até o 31 de maio, então eu vou andando cheia de trabalho dos arquivos pra biblioteca, náufraga, uma certa sensação de solidão profunda.  Três anos de uma Suíça que eu acabo finalmente descobrindo que é incontornável.

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Por isso é que nesses últimos quinze dias eu comecei a correr. Corro cinco vezes por semana, dez quilômetros de cada vez, e corro na chuva, corro no vento, e às vezes, quando vem essa sensação de amargura do tempo-que-não-passa, aí eu corro na subida, que é pra ficar mais cansada. Vou olhando os prédios quadrados que vão da minha casa até chegar no Palais des Nations, os jardins perfeitos e uma placa de probido para não-residentes do prédio.

E mesmo quando eu corro, mesmo assim - nesses dias que são de últimos dias - custa muito pra cruzar pro lado de fora desse mim que já não aguenta. E toda vez que eu piso, parece que pisa o peso de um mundo feito das regras, das linhas todas retas desse mundo daqui, do duro e do seco que chega a doer o meu joelho esquerdo. Não é a corrida do vôo. Não: essa daqui é uma corrida paquiderme, de uma respiração que não sai assim tão fácil, de um corpo que não quer mais se mexer, disso que é como se força extendida em tempo permanente para vencer aquela imobilidade inercial que não desaparece. Um arrastar de mesa pela casa, essa sou eu nos meus últimos dias de Suíça.

Que me salvem os olhinhos do Mooji na foto que eu olho todos os dias na parede da cozinha - e eu não sei o que eu seria sem eles no último mês. No viver abraçando a vida no momento que ela chega, do jeito como se apresenta, os últimos dias aqui vão assim enquanto, entre lá e cá, eu penso numa noite, com 13 anos, quando eu cortei o dedo com a lâmina mais afiada que tinha em casa. O fio era tão perfeito que na hora eu não senti nada, só um friozinho. O corte eu vi logo depois: era fundo e sangrava bastante.