sábado, 21 de setembro de 2013

#53. Diários de bicicleta: More stars than there are in heaven

We'll walk hand in hand
Never as we planned
And even those we never knew
Fast they disappear from view
Fading world without a price
Right before our very eyes
Melts before our very eyes
Dies before our very eyes
[Yo La Tengo, "More stars than there are in heaven"]
 
E entao as rodinhas da minha bicicleta tocam o solo da Andaluzia. Em cima delas vai o meu corpo, e juntas chegamos com os sonhos de alguém que espera. Com as vontades de alguém que deixou o tempo passar em balneários farofeiros para só entao cruzar na direçao de um sul que a 40 graus era impedalável no mês de agosto.  Com as expectativas de quem ouviu tantas vezes nesta viagem que "los andaluces son la mejor gente que hay en España".
E com o medo original que reside em todas as expectativas inevitáveis: a de que nao resistam à experiência. Que afinal de contas é o que normalmente acontece com elas.

 ***

O meu mapa Michelin de papel me mostra que estou numa regiao enorme, e que entre as grandes cidades há pueblitos perdidos no meio de um calor total, mesmo no mês de setembro. Sentada no hostel em Almeria, pego meu marca-texto para desenhar minha rota, juntando os pontinhos de cada um dos meus destinos finais. Minha constelaçao é um polígono aberto, e minhas estrelas sao Almería, Parque Natural de Cabo de Gata, depois para o norte tem Granada, Córdoba, Sevilha, e de aí me vou de trem até Madrid para pegar o eternamente cancelado vôo pra Genebra.
Um mês depois, sentada no computador enquanto passo minha última noite na Andaluzia, me dou conta que meu projeto original ficou só mesmo nas linhas azul fosforescente que eu desenhei no meu mapa de papel. Nao fiz nem metade da viagem pela Andaluzia. Away from it, nesse setembro meu GPS de pulso passou a maior parte do tempo perdido nas profundezas dos meus alfojes, e em algum lugar entre aqui e lá eu esqueci completamente de lembrar os quilômetros diários que até entao eu cuidadosamente registrava no meu caderninho. Minha bicicleta conheceu a paz silenciosa dos estacionamentos enquanto eu experimentava o mundo da biketrip sem a bike e nem a trip, para entender finalmente a obviedade de que minha aventura nunca foi sobre nenhuma das duas. Quando pedalo, faço no máximo 50 quilômetros, e dos mais vagabundos, vendo o desfile do mundo no sonho das coisas que passam. Nesses mês eu fumo, bebo cerveja e vinho, caminho a pé com minhas havaianas européias vagabundas, como nos parques e nos bancos das praças, esqueço os principios nutricionais e o bla bla das digestoes todas dessa vida enquanto meu canivete vai cortando o pao com queijo de cada dia e eu vou assistindo sem pressa meu corpo que derrete devagarzinho, impossível de caber nas roupas de três meses atrás.
Na Cabo de Gata que nao é senao um parque com praias e montanhas em pleno deserto, eu tomo banho na água salgada da metáfora das três paisagens que representaram minha viagem. Em Granada, quando desisto de encontrar um parceiro de bicicleta, por acaso acabo sentada na mesa de um café em frente de um menino que tem os olhos do silêncio. Eu digo sim, ele diz sim também. No dia seguinte, lado a lado, nossas bikes vao buscando o caminho da Sierra Nevada.

Com o Marvin eu subo e desço pedalando as montanhas na chuva, e juntos passamos duas semanas meditando nos jardins das Alpujarras, comendo figo e tomate das árvores, acampando sob os céus mais estrelados que eu já vi na minha vida. Um dia eu acordo e é hora de ir embora. Sinto que tudo que respira em mim é amor, e meu amigo entende e sei que sente o mesmo. Com a paz de quem confia de que o que há no final está de acordo com o Sagrado Mistério de Tudo, eu abaixo minha cabeça enquanto o Marvin vai raspando meu cabelo devagarzinho, dizendo que meus cachinhos que agora caem no chao sao estranhos porque crescem em todas as direçoes.




- I look weird now, Marvin.
- You're still Mariana.