sexta-feira, 23 de agosto de 2013

#51. Os diários de bicicleta: porque eu odeio os desertos de dentro e de fora

Zaragoza-Híjar-Castellote-Martín del Río-Teruel-Albarracín
8 dias, 300 inesquecíveis quilômetros no meio do mais puro-lugar nenhum

Deus criou a perfeiçao dos dois meses da minha viagem de bicicleta, como se fosse uma sinfonia, uma coisa perfeita, algo que, tivesse eu previsto como ideal, seria insuportavelmente chata - a realidade me saiu duzentas vezes melhor. Pois vejam - saí da França onde eu vivia, acompanhada de uma companheira e aprendiz de cicloturismo como eu, gentilmente deixando o meu mundo na direçao do sul, com carinho e amor. Depois do teste drive com a Carol, entrei na Espanha e respirei aliviada: feels like home; já estou apaixonada por esse país no primeiro dia. Desci e alcancei uma sorte de cura espiritual pra dois anos da Suíça-dos-coraçoes-gelados entrando na Espanha e chegando a Santiago de Compostela. No caminho conheço minha guru de cicloturismo, minha linda Judi, e com ela pedalo até Portugal. Quando chego a Barcelona no horroroso Polishop-voador que é a Ryanair, recebo o amor da Ju e do Michel e pedalo sozinha esta coisa livre, maravilhosa, diversa, altamente ciclística e exuberante que se chama Catalunha. Nunca fui mais feliz entre montanhas, mares, ciclistas, vulcoes cheios de vegetaçao. Dali pego um trem pra Zaragoza, sem dúvidas minha cidade preferida na Espanha, conheço a comunidade ciclística ativista na Ciclería Social Club e marcho pros Pireneus, passando três dias nas montanhas mais bonitas que eu já vi na vida (e olha que eu morei na Suíça, né?).
Tudo até que, voltando a Zaragoza, eu decido pedalar em direçao ao sul, fazendo meu caminho até esta cidadezinha famosa chamada Albarracín, a uns 250km - dali o plano é descer em direçao à Valência, depois baixando pela costa e chegando à Andaluzia.
O que eu encontrei na minha descida até Albarracín, meus amigos, foi o deserto. Nem sabia que tinha deserto na Espanha - vai dizer que você sabia? Pois bem: deserto de Mosnegros, it is.
E agora eu entendo que existem coisas que alguém pode aprender amar, como eu aprendi a amar as montanhas.
Do deserto eu quero distância até o fim dos meus dias. O deserto pra mim, apesar dos meus esforços, nao passa de um grande, gordo, asqueroso e potente  mind fucker.

***
Quando foi a última vez que você ficou sozinho?
Você lembra de algum dia em que nao viu e nao falou com NINGUÉM stricto sensu?

Saio de Zaragoza na maior tranquilidade, uma da tarde, e às três faz 40 graus. A estrada é uma reta, e dos dois lados eu vou vendo nonstop essas montanhas, e tudo é pedra, um tom interminável de marrom e dourado. Nenhuma plantaçao, só montanhas baixinhas de pedras brancas, terra e capim queimado. Passa um carro a cada vinte minutos, quando muito, e quando olho pra frente o asfalto vai fazendo aquelas ondas de miragem de deserto. Eu pedalo, pedalo, e a terra de ninguém nao termina nunca. O horizonte é eterno, nao existe ponto de chegada. Os pequenos pueblitos estao a cada 30km e eu começo a ter medo. De tudo, basicamente, porque a água está acabando, porque a única coisa que eu encontro no asfalto sao essas dezenas de passarinhos mortos e de cobras douradas que atravessam rapidinhas o meu caminho.
Nunca imaginei que 50km pareceriam tao longos. Uma semana, e todos os lugares onde eu chego sao horrorosos, carissimos, nada pra comer. É tao seco que minha lente de contato vive seca. Eu paro constantemente, faço uns exercícios de yoga, mas sinto como se estivesse sufocando. Nao consigo respirar. Nao consigo dormir. Enfiada numas estradas secundarias onde nao existe ninguem, escrevo pros meus amigos bombeiros canários informando onde estou - y se por la noche me llamas y no contesto, llama a los bomberos aragoneses para que vengan por mi, porfa. Principalmente o medo de morrer, a solidao absoluta, a desconexao total. Um monte de montanhas difíceis e aquele nada absoluto e ubíquo, uma eterna vontade de vomitar, uma eterna vontade de gritar.
Chego a Albarracin, essa cidade que todo mundo ama e que o Lonely Planet me diz que é uma das mais lindas da Espanha, e eu nao consigo caminhar. Estou exausta. Passo dois dias deitada na minha barraca, só saio pra colocar minha perna fodida no rio. E quando, depois de dois dias, tomo meu caminho pra Valência, oq ue acontece é assim: depois de 60km eu paro na beira da estrada, sento e começo a chorar.
I´ve had enough.
Nao sou feita pra essa solidao.
Nao sou obrigada a ficar nesta merda.
Odeio o deserto e ponto. Nao adianta.
Saio correndo pra estacao de trem como se fosse uma fugitiva, peço uma passagem pro primeiro trem pra Zaragoza. Entro no trem e imediatamente consigo respirar, impressionante. Chego a Zaragora, vou logo à Cicleria, e ja me convidam pra um pedal às 21:30 da noite. Só meninas, 30km, pra curtir o primeiro dia de lua cheia e tomar uma cerveja. Somos 20 mulheres e uns 5 caras, estou feliz, adoro este lugar.
Nao se pode aprender a amar tudo. E eu aprendi agora que existem coisas que a gente precisa odiar. com toda a força da sobrevivencia.
O deserto agora é minha metáfora pessoal.

4 comentários:

  1. um abraço daqui, viu? o joão cabral bem que disse que a espanha parece um deserto dourado... ou algo assim...

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  2. Amada, eu não te contei??? O saara é ai... kind of... Sim, a Espanha é ária para cacete. Madri é mais seca que Brasília, pois não tem os quatro meses de alagamento anual. Vc aprendeu a amar Brasilia, certo? Eu aprendi a amar Madri... As vezes, no meio do deserto, conseguimos encontrar uma chapada... who knows? Mas sim, é inóspito, desconfortável, impossível de dormir sem um humidificador, com cores pastéis por todos os lados... e não sei quanto a vc, mas eu nào sou muito de cores pastéis e terrosas, ou de climas secos, pessoas secas, relações secas. Consigo entender sua metáfora como se fosse minha própria, minha querida amiga.
    Não conheci Zaragoza... mas fico feliz q vc tenha encontrado seu porto seguro! Se tiver a chance, eu gostei bastante de Granada.
    E continuamos no mesmo caminho, mesmo em cantos tão diferentes do nosso mini-planeta.
    Muita sorte, muita paz e amor, muito amor para vc!
    PS: eu costumo chamar a Ryanair de Aerolíneas Pau de Arara... :P

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  3. Mulher poderosa nao eh a que nunca cai, mas sim aquela que cai e levanta.

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  4. Mari!!! Volta pra cá!!! Aqui tem amor, cerveja e mar!!!
    :-)))))

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