sexta-feira, 14 de setembro de 2012

#6. Sobre espiritualidade e pertencimento


L'homme est son propre maître et il n'y a pas d'être plus élevé, ni de puissance qui siège, au-dessus de lui, en juge de sa destinée. "On est son propre refuge, qui d'autre pourrait être le refuge?", dit le Bouddha.*
Regard experiences as if they were about to disappear.  What is it that anchors them in reality? What would you save of them? What would you give up?  Only someone who has achieved independence and detachment, someone whose homeland is 'sweet' but whose circumstances make it impossible to recapture that sweetness, can answer those questions.**

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Foi agora, em julho.  Eu caminhava em Helsinki sozinha, o verão mais frio da minha vida, quando descobri que simplesmente não me encaixava. A estúpida descoberta espetacular.  Retardada no tempo, claro, sempre melhor saber disso aos 20 que aos 32.  Mas espetacular mesmo assim, não importa.
É que sempre tive a sensação de não pertencer a nada e a ninguém, desde pequenininha solta e um pouco deslocada por aí.  Arrepio a turmas grandes na escolinha e depois no colégio, ah!, eu já passei muito recreio brincando sozinha por não me dar bem com qualquer ética de grupo. Uns anos depois, já um pouco mais crescida, comecei a procurar aquele lugarzinho, no espaço e no tempo, que fosse exatamente, em cada milímetro, o lugar certo de se estar, onde eu finalmente pudesse dizer e sentir:   é aqui que eu sou.  A cidade onde as coisas estivessem acontecendo, a profissão que fosse sinônimo de vocação, o emprego que me permitisse realizar tudo, tudo mesmo, que minha imaginação e meu intelecto estivessem com vontade de fazer, sob pena de não cumprir minha missão nesta vida.  Não aceito nada menos - pertencer e exaurir possibilidades, voilà meu destino não cumprido sobre a face da Terra.  Que a vontade de realizá-lo como profecia tenha me levado de Curitiba pra Nova York pra Brasília pra Genebra pra Helsinki pra Paris, e de advogada para fotógrafa para assessora de direitos humanos para vegetariana e yogi e historiadora é motivo pra outro post.  Porque essa daqui é a epígrafe de um texto sobre espiritualidade, essa palavra que a modernidade quis expurgar da nossa casa mas que ainda é o elefante branco na nossa sala de jantar.

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Ser parte de uma religião é de alguma forma pertencer. É morar num país de pessoas que compartilham uma fé, e é além disso uma identidade - "ah, meu pai também é espírita!", "de qual orixá você é filho?", "não sabia que você era budista...".  Mas, pra mim, a primeira coisa que eu vejo em alguém que tem fé, não importa qual, é essa espécie de aura sagrada, esse vestir no próprio corpo algo que eu, eu realmente não sou capaz de viver, já que (como em todas as outras coisas), nunca consegui fazer parte de uma religião.  O cara que medita todos os dias de manhã, o evangélico que fala em línguas, o católico que paga promessa em Aparecida, a menina que faz a cabeça no terreiro e na saída dança num transe maravilhoso e o ateu convicto - todos, todos esses fazem visitinhas diárias para LáDosLadosDeLá.  Eles são os mensageiros, os guardiões dos portais, os viajantes entre dois mundos; eles compreenderam o sentido último, eles têm a chave do espírito, o segredo que une todos os tempos, e sobretudo eles serão salvos. Eu, eu não tenho mínima idéia de nada disso; ainda não consegui encontrar o ticket pro trem que vai pro lugar certo.

Claro que já tentei. Estive por todo lado, em várias práticas e cultos, mas é só aparecer um dogma, um pedaço de focinho de dogma, que pronto, tudo entra em crise.  Classicamente, minha primeira reação é tentar assimilar a Palavra e negar minha desconfiança ou crítica - vai, Mariana, obedece, sente o Poder, desta vez vai dar certo. Mas não, nada de catarse, nenhum presentinho pra mim: o tempo denuncia, começo a me achar ridícula repetindo aquelas coisas ou aqueles movimentos (essa minha desgraçada mente científica), falto uma ou duas vezes com minhas obrigações litúrgicas, e pronto, acabou, nunca mais apareço.  Depois, a reinterpretação: passa um tempo e eu compro alguns livros, vou de vez em quando no templo, dou umas rezadinhas que eles me ensinaram, mas do meu jeito, antes de dormir, acendo uma vela, enfio um pedaço do ensinamento do lado de todos os meus outros, rejeitando a metade, tudo isso num sincretismo que é muito, muito mais feio e esquizofrênico do que o Frankestein, e que justamente por isso não ousa muito sair do meu laboratório subterrâneo.

Assim, incapaz de me jogar sem rede de proteção em qualquer caminho religioso, é que sempre me senti algo entre injustiçada e um pouco brava com Deus.  Minha impossibilidade de ter fé em algum percurso religioso deve ser algo que denuncia um lado espiritualmente horroroso dentro de mim, e que eu infelizmente não consigo ver. Algo que, inacessível ao meu próprio consciente, eu sou incapaz de mudar.  Sou vítima de minha pequenez, da minha impropriedade de espírito, do meu baixíssimo nível de evolução, do meu provável karma tenebroso de outras vidas.  Por que, ave Maria puríssima, meus amigos tod@s descobriram O caminho de yoga que eles querem seguir, menos eu? Por que eu tenho sempre que querer uma respiraçãozinha diferente na minha prática yogi, quando os mestres dizem que não pode não pode não pode? Por que todo mundo ou é road biker, ou mountain biker, ou cicloturista, e eu continuo aqui, fazendo cicloturismo de road bike em trilha de terra?  No fundo no fundo, sempre vivi a impossibilidade de encontrar um caminho  pra mim como a negação do direito que eu tinha de viver minha espiritualidade.  Um que era dado para outros mas negado pra mim, que buscava tanto - e por que, qual a justiça que existia nisso?  Por isso, talvez, sempre achei que Deus não podia ser uma coisa tão boa assim.

Até ir pra Finlândia, que foi uma continuação mais ao norte do meu exílio em Genebra, mais ao sul.  Porque ali, naquele lugar, foi que eu cheguei no máximo da minha experiência de exilada: é um despertencimento tão reafirmado que não tem nenhum, mas nenhum jeito de apagar.  Está na cara: na Finlândia dos loiros-de-olho-azul eu sou claramente não finlandesa, e descobri ali que mesmo a minha cor, que sempre foi um dado pra mim, é diferente pra eles: eu não sou branca, sou oliva.  Ali fala-se uma língua que não parece com nada que existe neste planeta, e não interessa com quem eu esteja conversando e em que língua, na minha testa sempre vai estar escrito em letras maiúsculas - ESTRANGEIRA.  E num lugar de ser estrangeira o tempo todo por excelência, num lugar em que tentar pertencer é fingir ser uma coisa diferente, em que ninguém conhece você, em que o despertencimento é o cartão de visitas indefectível, o que é que sobra como identidade pra uma pessoa que não tem nem religião e que já teve todas as profissões do mundo?  Pra mim, sobrou lá minha deliciosa gororoba espiritual, minha síntese pessoal polissêmica e multifatorial, que é só minha, que é de tudo que eu sou e de tudo que eu vivi, e sobretudo de tudo aquilo em que eu resolvi acreditar, sendo coloridamente mariana.  E que isso não tem nem uma gotinha de descrença, mas é pra mim uma fé atravessada pela minha experiência, sem mestres ou juízes, sem inferno ou paraíso.  Depois daquilo, escolhi abraçar de vez essa terra de não pertencer a lugar nenhum, esse lugar onde eu misturo orgulhosa Buda com Edward Said. Sem nenhum guru e com muitos professores para ajudar o meu espírito nessa vida, eu caminho por aí, pedaço de qualquer coisa, mestiça crioula híbrida esquizôfrenica - Frankeinstonha contente cumprindo meu destino em todos os lugares da face da terra.




[*a citação é de "L'enseignement du Buddha d'après les textes plus anciens", de Walpola Rahula].
[**citação de "Reflections on Exile", do Edward Said]

Um comentário:

  1. Lindo o seu texto. Gostei muito. Vou fazer um por ter passado, graças a Deus, por experiências parecidas: de não pertencimento, de "ser diferente, de ter nascido com olhos castanhos e pele morena em uma família predominantemente de olhos azuis.
    -O pertencimento e o ser diferente é uma qualidade e não desvantagem; no final o "caldo" é mais gostoso, pois foi trabalhado, os planetas abaixo do horizonte te fizeram pensar neste neste assunto te levando ao autoconhecimento!
    -A espiritualidade está em nós os gurus e "religiões" apenas ditam normas.
    Mamys

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