Fiz umas aulas de pintura japonesa da última vez que estive em São Paulo, em julho. Entre uma conversa e outra, eu e a professora acabamos falando sobre meditação, e ela me pediu pra escrever um relato das minhas experiências para dividir com outros alunos que queriam começar a meditar.
Nos últimos dois anos andei sem casa, dividindo o tempo entre a Índia, o ashram em Portugal e a vida com a sangha na Espanha. Meditar virou meu café com leite de cada dia. Aqui vai o texto sobre meditação que entreguei pra professora, junto com uma promessa: depois de voltar da minha viagem de bicicleta que começa amanhã (sim! Alemanha+República Tcheca - no frio!) vou dedicar um tempinho pra falar desses dois anos por aqui.
1. Sabão em pó, banana e leite
Não foi da
noite pro dia. Quer dizer: foi. Mas demorou quinze anos. Depois demorou mais
dois. Mas quando aconteceu, precisou de menos de um segundo.
Ouvi falar
em meditação pela primeira vez quando tinha uns quinze anos, ainda na década de
90. Vivia em Curitiba e uma amiga que fazia tai-chi me disse algo sobre umas
práticas de relaxamento e respiração. Naquela época, bem-estar e espiritualidade
não eram moda. Ninguém fazia Pilates, ninguém praticava yoga e meditação era
sinônimo de budismo. Quem sentava numa almofadinha em silêncio, portanto,
estava ali para alcançar a iluminação. Sendo uma dessas pessoas bem ordinárias
e prosaicas, nunca achei que pudesse passar 20 minutos em silêncio, concentrada,
e menos ainda me iluminar. E então foi assim, derrotada pela minha própria
auto-imagem, que fechei a porta sem nem tentar e me escondi ali, atrás dela, espiando
de longe os meditadores todos do mundo como se eles tivessem algo especial que
sem sombra de dúvida devia estar faltando em mim.
Quinze anos
mais tarde as coisas tinham mudado bastante. O ano era 2011 e agora todo mundo que
eu conhecia fazia yoga – inclusive eu. O David Lynch já tinha publicado um
livro relacionando meditação e processo criativo, e volta e meia saía algum
artigo na internet informando que a ciência reconhecia que meia hora de
silêncio melhorava as funções cerebrais, a concentração, o sono. Sentada na
sala do meu apartamento, eu arrumava as malas pra me mudar para a Suíça
enquanto um amigo do trabalho tomava uma cerveja na varanda, comentando sobre
suas experiências com a meditação. Ele
descrevia um universo de aventuras visuais e auditivas, um silêncio cristalino,
chuvas de insight e compreensão
profunda sobre a própria existência. “Também posso”, concluí, ouvindo o amigo
normal, e naquele dia resolvi que iria atravessar a porta e colocar o pezinho
para dentro daquele mundo apetitoso. Anotei no caderninho: chegando em Genebra,
minha primeira providência vai ser procurar um grupo e aprender a meditar.
Não um, mas
todos deste mundo. Nos dois anos seguintes, sentei nas almofadinhas ao lado de
centenas de meditadores na Suíça e na França. Pratiquei Vipassana religiosamente
às terças e quintas, cantei horas e horas de mantra junto com outras pessoas
para me purificar e concentrar os pensamentos, fiz cursos para desenvolver a
mente compassiva com uma monja respeitada dentro da tradição do budismo
tibetano e – ainda com os tibetanos – passei a frequentar grupos de meditação
todos os sábados. Não satisfeita, me aventurei a sentar de frente para a parede
num templo subterrâneo parisiense onde uma mestre me introduziu à meditação
zen.
Não deu
certo. Mais: não deu certo nenhuma vez. Longe disso. Fui a maior heroína derrotada da história das
religiões orientais. Nenhum silêncio cristalino, nenhuma sensação mística
transcendental. Minha cabeça virou uma maquininha, e era só eu sentar que
começava a lista do mercado: “sabão em pó, duas caixas de leite e banana...
Será que ainda ficou maçã na geladeira”?
No dia da
meditação zen eu dormi, bati a testa na parede, atrapalhei a concentração de
todos os demais meditadores super sérios vestidos de quimono preto e morri de
vergonha.
2. O tempo além do tempo
E então um
dia aconteceu. Inesperadamente, sem
aviso e nem glamour, num retiro silencioso que estava sendo transmitido ao vivo
pela internet. No telão que montamos na sala de uns amigos, ouvi o mestre lá do
outro lado do mundo dando as boas-vindas e introduzindo os ensinamentos. Eu
tinha trinta e três anos na noite do dia 11 de setembro de 2013.
As pálpebras
que fecham um olho de cada lado, de uma só vez, e na terceira frase também as outras
cortinas entre o meu corpo e aquilo que está do lado de fora da minha pele caíram,
todas as janelas se trancaram e eu comecei a habitar o dentro de mim pela
primeira vez. E a sensação foi assim: você
tem um quarto em casa que não foi aberto nos últimos trinta anos. Nem no
inverno e nem no verão, e pode parecer que é só o hábito de não perder tempo
ali que te afasta, mas na verdade existe, misturado com ele, esta reação de
evitar os lugares desagradáveis. Até que um dia alguém te empurra, você entra sem
querer e descobre que a maior parte das coisas que você tinha lá dentro
apodreceu.
Este quarto
é você. E quem entra também é você. As coisas que você encontra são você. A
porta é você, a travessia é você, e o corpo que te assiste dando o passo é
você. E o tempo no qual todos os gestos acontecem, este tempo acontece dentro
do espaço consciente daquilo que você é.
No
silêncio, todos os quartos esquecidos e tudo aquilo que está dentro dele vai
aparecendo e sendo revivido na experiência do corpo daquele que medita. Estar
vivo e aberto é a senha para penetrar estes lugares secretos. Meditar, assim,
não faz parte dos nossos hábitos de agir a partir de uma intenção. É preciso
ligar outro canal. Não medito pra me acalmar, nem para controlar os
pensamentos, nem pra pensar coisas boas ou descobrir algo. Entro na água,
atravesso a arrebentação, chego no fundo, deito de costas e vou boiando. Passam
ondas e passam as correntes, chegam os peixinhos mas eu não abro o olho e não
sei onde vou parar. É o mar quem decide. Mas a experiência é minha, e só eu
posso sobreviver e explicar para os outros como é sair boiando pelo oceano
selvagem dos vários mins.
No primeiro
ano meditei todos os dias, muitas horas por dia. Sentava sozinha em silêncio e
deixava tudo acontecer sem me mexer nem um pouquinho. Tive a sorte de encontrar
o meu mestre muitas vezes, também, e ele me orientava. Às vezes vinha raiva de
alguém, e eu ficava com a raiva – vivia com,
não apesar dela: sem tentar fingir
que não estava acontecendo, sem tentar reprimir e nem substituir por algum
sentimento mais nobre. Sentia os lugares do meu corpo onde a raiva se expressava,
e às vezes ela era uma explosão de rancores tão forte que era como se não
existisse mais nada além das injustiças todas que já sofri nesta vida. E de
repente a raiva passa. Eu continuo. Às vezes aparecem os amigos, às vezes
aparecem os arrependimentos, as palavras que nunca falei e que nunca mais vou
poder falar para o meu avô, e muitas vezes vem tanto amor que parece que o
ponto no meio do meu tórax está com um buraco que não para mais de vazar.
Com o
tempo, a prática da meditação foi ficando tão normal que começou a transbordar.
Existiam as horas de sentar em silêncio, sozinha, mas me dei conta que,
inconscientemente, tinha passado a praticar o mesmo princípio à minha
existência ordinária. Em vez de reagir, foi sem querer que comecei a observar.
Quando alguma coisa requeria um gesto ou uma ação, o gesto e a ação vinham, mas
sem o mesmo tipo de investimento emocional de antes. Como a raiva, no
colchãozinho: vem, fica, abre a porta e vai embora.
Eu
continuo.
3.
Depois agora
Esparramada,
como se tornou, entre os momentos de retiro em cima da almofada e a hora de
pagar a conta na padaria, já não sei discernir com tanta clareza quais são os
benefícios que a meditação me trouxe. Para dizer bem a verdade, nunca procurei
meditar por causa do ponto de chegada, mas por causa da travessia. E olhando
para trás, foi tudo travessia, mesmo a solidão embalada pela lista de mercado.
A única diferença é que eu tentava de todo jeito fazer a lista de mercado
desaparecer, em vez de deixar a banana e o sabão em pó desfilarem,
simplesmente, sem prestar tanta atenção.
Existe um
mantra que diz: gate gate paragatte
parasamgatte bodhi svaha. Uma das
traduções possíveis é: “sempre ser, sempre tornar-se Buda”. O que ele anuncia é
essa linha que nunca começa e nunca termina entre o ser e o tornar-se. Ao longo
dela, a existência é ininterrupta e orgânica, um começo se junta com um fim, e
as ideias de nascimento e morte não conseguem descrever aquilo que só acontece
como transformação. O universo, dizem os físicos, continua em expansão.
Medito
porque, quando fico sozinha e em silêncio, caminho e sou caminhada pela
existência como quem anda numa sala de espelhos em que tudo reflete tudo. Cada
imagem me devolve em regressão infinita, e
acho que nunca vou chegar ao fim de mim mesma. Não no desta daqui, a pequena.
No da outra.
Para
entender, é preciso, talvez, dar um passo para o além da mente lógica. Para ir
além da mente lógica, minha alternativa é meditar.